quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Um rato

Eu tenho constantes quase-mortes.
Acordo, como, corro, almoço, cochilo, acho ruim de ter que acordar novamente. A promiscuidade e superficialidade da cidade contaminam. Como viver plenamente num lugar onde as igrejas são de ouro?  Deus foi embora delas.  Ouro, mármore, formas encaracoladas, cheiro de madeira antiga, expulsaram o Senhor. Brinco, batons, bota, copos e vontades, expulsaram Deus de mim. Desde então, arrastei exercícios avaliativos, festas sem ânimo, poucas horas de sono e vontade de dormir para sempre. Achei o álcool agressivo e as madrugadas também. Não li. Não escrevi uma linha.  Esqueci o porquê do jornalismo. Por detrás das cutículas cansadas perdi a sensibilidade dos dedos. Senti as pessoas só na ponta da língua sem me importar com quem veio ou quem foi. Eu não havia conseguido lidar com as baratas ainda quando apareceu um rato. O rato invadiu minha vida. Passou na minha copa, escondeu-se na minha cozinha, serelepiou enquanto eu chorava. Gritei histérica, pedi socorro.

que vida é essa?
Sobre o chão que acolheu meus pés, por vezes alegres e cambaleantes, por vezes cansados ou doloridos, o chão que me conforta nesta terra que não é a minha, um rato de esgoto qualquer passeia.  Não se importa com meus versos, meus constantes pesadelos, meu travesseiro, o terço sobre a janela ou meu medo de estar só. É alheio aos estoques de biscoitos ruins, berinjela e limão na mesma cozinha que ele habita, fantasmas da minha constante obsessão com peso. Eu odiei o rato. Odiei, gritei por três dias. Fiquei excessiva como estou hoje com as palavras, cheia de alardes, porque na minha vida exista um rato, um não-autorizado rato.

 Um rato fez-me perceber a tirania que é viver. Não importa meu repertório, o grande discurso, se o amor de Deus é infinito: ratos, obrigações, álcool, o fisiológico, nos subjugam. Um fio condutor, uma linha tênue me permite existir, e por vezes existir miseravelmente. É dura a existência porque precisamos retirar as cutículas e pintar as unhas. É assustadora a quantidade de sódio nos alimentos. Quando chove, assusta-me ficar só nessa casa de porta e janelas tão próximas da rua.
São João del Rei choveu por dias a fio. Aqui dentro chove há meses. Esqueci-me do grande porquê. E dos pequenos também. Não entendi mais meu imenso gosto por cheiro de café. Não falei pelas manhãs, "obrigado Senhor, pelo dia que nasce pra mim e pelos meus", não coloquei-me em silêncio apaixonado diante do Sacrário. Perdi a hora de voltar para casa, tomei chuva sem nenhuma graça. Desapaixonei-me das pessoas, da palavra "largo", e dos mistérios dos sinos.

Então isso é tudo que tenho feito. Arrastado-me entre os campus Tancredo Neves e Santo Antônio, entre a Avenida Leite de Castro e Paulo Freitas, entre o Sales e a padaria, achando estes nomes próprios rudes demais. Ônibus. Horário. História do Jornalismo. Por vezes, saí sob uma ignorante chuva sem freios, sem zelo pelas pessoas que sofridamente cumprem suas sinas. E pensar que fui eu que cavei todas as minhas.

Um dia, vi um pássaro pousado num galho de mato. Ele era muito pequenino, ainda assim, não imaginei que um galho poderia sustentá-lo. Eu ia com sono demais sob um sol machucando minha pele para o Santo Antônio, e estava amaldiçoando o dia até o momento. Mas era muito bonito o pássaro. Era impressionante uma beleza tão pequena. Algo faiscou em mim. Noutro dia, uma amiga viajou duas horas, sob o pretexto de vir para uma festa, mas o grande motivo era mesmo me dar um abraço e colo. Ajudar-me a chorar enquanto percebo a graça que tem sido minha busca por profundidade: eu mesma nunca estive tão rasa! 

Neste fim de semana visitei um cemitério e achei os túmulos bonitos. A morte é tranquila, cheira a sol quente, mato, vento suave e flores murchas. O barroco não é tão assustador assim. Eu sou também de barro e oca (com sua licença, Adélia). Consolo-me com minhas metades incompatíveis. Não sei ser de ninguém, nem de mim mesma: constantemente me desobedeço. Minh'alma não encontra com outra, pois procura à ela mesma. Sempre acho que falta algo em tudo que escrevo.Tell me that you'll open your eyes. Diz a música. Meu coração ainda se alegra quando batem na minha porta no meio da tarde sem avisar, a gente tava passando por aqui e resolveu vim te ver. A rafa pediu para eu levar o pendrive, o jão trocou a lâmpada para mim, os meninos trouxeram um videogame pra cá. Quando entro na capela das irmãs enclausuradas, meus olhos ainda se arregalam na direção da janelinha por detrás da qual elas se escondem. Observo a chama do Santíssimo. Penso que mesmo pequena, mesmo que eu não esteja sentindo, ela ainda crepita dentro de mim.

Algumas coisas me fazem existir nobremente. Meu fascínio por religiosas, o travesseiro com nome, as visitas ao Seu Paulo. O fato de que enquanto os roxos são no meu corpo eu levo na boa, quando são na alma de alguém, me tiram a graça e arrancam uma lágrima. No dia de Nossa Senhora das Graças, sem saber, pus meu colar de terço. Quem contou foi o Jão, Fato é que eu não queria ter me perdido tanto, mas vai ser muito bonito me reencontrar. 

Fiquei séculos pra escrever esse texto. Porque eu quero ser sempre poética, literária, mas nem com o esforço eu conseguiria agora. Estou seca, opaca, alheia. Só saiu quando eu entendi que ele era uma necessidade não-poética. A poesia é lúdica, transcendental, espirituosa. Adjetivos que estão longe de mim: estou gordurosa, biológica, cheia de fomes corporais. Sonos, gritos, ranger de dentes. Eu quero  mesmo um galho de arruda, uma boa benzedeira, uma novena, talvez um perdão sincero. 

No terceiro dia, não gritei com  o rato. Eu e mais duas amigas incríveis rimos na presença dele. Armamos com certa leveza esquemas táticos para pegá-lo. Fernanda, fica com a vassoura perto da geladeira enquanto eu cutuco ele aqui no canto. Um quarto elemento foi necessário para tentar exterminá-lo. Mateus, mata o rato pra nós. O danado fugiu. Passou do lado do meu pé, e dessa vez eu não chorei. Não chorei porque compreendi que o rato é um dos incidentes da vida. Minhas quase-mortes também são. 

O rato saiu pela porta da frente.
O café da Cássia cheira muito bem. Ainda quero dançar na Coliseu, ir no show do The Rio Mansion, arranjar um grupo de oração pra frequentar por aqui. Descobri músicas tão opostas e tão igualmente boas: Realidade ou Fantasia e A pé. O museu de Sant'Ana em Tiradentes é lindo. Amo museus. São João tem alguns que ainda não entrei. Este texto bem mais ou menos me tomou uns três dias, e mesmo a poesia teimando, vou seguir gritando e descabelando atrás dela.

O fato é que tenho quase-mortes, mas também constantes pequenas redenções.

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