domingo, 17 de janeiro de 2016

Cássia.




Em busca do que é belo e vulgar.

Cássia veio de Ermida. 
Lugarzinho perto de Divinópolis, ainda muito verde de mato, onde as sorveterias tem sorvete bom e barato. Partícula de mundo que minha vó, tão antiga, conhece, diz ter parentes que viveram por lá, imagino que numa rocinha doce. É um desses pedaços de nada que são tudo: não tem cinema ou hospital, mas as pessoas se lembram de conversar nas esquinas de chinelo e meia enquanto seguram os braços, e se recordam  de  festejar Santo Antônio. A sutileza do lugar pôs Cássia meiga. E dócil ela foi para o mundo. Primeiro, estacionou em Divinópolis -que flerta a possibilidade de ser grande cidade- para estudar em escola Federal, onde se esbarrou comigo. Éramos as duas encaracoladas na época, barrocas entre o bem e o mal: será que quero ser boa ou ser má? Frequentávamos os retiros enquanto pensávamos na vida que havia de vir. Indecisas. Inseguras. Semi-vivas. 

Quando tivemos que sair, continuei na histeria dos meus dramas. Vim para São João del-Rei, sofrer com esses santos de cabelo e careta nas igrejas barrocas. Segui sendo assim, meio  tristonha, brincando de pecado e salvação enquanto estudo. E Cássia? Teve a coragem que não tive e encarou a capital. Na Letras, na UFMG, na moradia, em Belo Horizonte. Assustada foi e, quando precisou, chorou de solidão na mesa do bar em Divinópolis. "Não tem amigo, não tem ninguém pra conversar, Sarah! Para sentar e fazer isso que a gente tá fazendo agora.", e pediu suco de limão e pinga, mais barato que caipirinha. É gente de excesso de víscera, que ferve café pros amigos e pergunta com interesse sincero como anda a vida, que nem eu. Ê, amiga. O que vai ser de você aí?, pensei. Eu, fraquíssima, com custo aprendi a conviver com o fantasma das cidades históricas que habita São João. 

Mas, Cássia não é mulher de desistir fácil. Inverteu a lógica dos gigantes prédios belorizontinos, e de repente, é sua beagá. Seus cursos de língua, sua turma de cabelo natural e muita tatuagem, seus amigos da moradia. Assim são as pessoas sutis. Chegam com os olhos arregalados no mundo novo e logo estão se encontrando com quem habita aquele universo. Não estava lá para ver, mas imagino bem como foi: observou os rostos, os gostos, a lógica, derramou em todo mundo seu cuidado tão bonito, e pronto: Belo Horizonte não é mais tão triste. Cássia é como um camaleão.

Eis que fui para lá. No meio da praça da Liberdade, num banco que me espirrava a água do chafariz, um sol forte atravessou a árvore acima de mim e bateu bem no meio do livro que eu lia. Imediatamente pensei: esse lugar vai mexer em mim, agitar meu peito que nem essa água desatinada de chafariz. Cássia conhecedora das linhas de ônibus, eu menina assustada no meio daquele lugar que, covardemente, recusei habitar. As ruas se cruzam de maneira confusa, se encontram e se afastam, enquanto passam os veículos, instantâneos. As pessoas não tem expressão. O rapaz de roupa social, a adolescente voltando da escola pública, a mocinha trabalhadora, todos com traços estacionados no zero. Só a senhorinha de saia longa e fios brancos, sorria e conversava com Cássia. 

Acinzentou tudo e choveu. Ficamos cansadas pelo apartamento mesmo, jogadas nos colchões onde minha amiga mora. Lá tinha uma moça ruivinha de fala calma e tatuagem do Pequeno Príncipe, e uma morena de cachos muito agitada, estudando pra OAB. Tudo numa sintonia tão perfeita e estudantil, que meu coração alegrou. Cozinhamos. Teve bife, purê de batatas, tomate e arroz, e o disco do Ciço como trilha sonora. Meu estômago machucado agradeceu a comida caseira, minhas mãos  já meio insensíveis puderam ser vivas picando e descascando as coisas. O tempo chovia e chovia, em sintonia com a gente, em sintonia com Cássia. Ela está acumulando pilhas de caixinhas de remédios ao lado cama, a pele anda amarelada. Ô, amiga, fica assim não. Sempre risonha, andava meio sem gracinha. No outro dia acompanhei-a na ultrassom (chuva ainda incansável): nada no fígado mas o baço está inchado. Ê Cássia não fica assim. Também tenho andado triste, sentindo o abandono do mundo, trazendo em mim assuntos os quais não tenho com quem conversar. Mas embelezemos nossas dores. Somos metidas à poeta, não somos? E vamos ouvindo o moço. "As canções de amor, inventam o amor".

Na sexta Tauane nos encontra, esse nome forte que começa com T, de "tá." (como respondemos alguém quando estamos dispostos a algo.). Tauane chega me assustando, agarrando meu pescoço por trás, eu desesperei achando ser bandido. Começa o show. Ê, Cícero. Que dancinha solta, que timidez meiga, que banda sonora. Se eu quisesse ser barroca e exagerada como os santos são joanenses eu te diria que se precisasse ia andando os 185 quilômetros entre SJDR e BH só para te ver cantar assim, tão lindo. É bonito demais esse menino. Apaixonou-me desde os dezessete anos, colocando-me num estado angustiado do sentimento. Parece que não vivi um amor, que sofri um término, que estou melancólica segurando um copo de café na mão, tudo doendo e florindo ao mesmo tempo... me atordoam suas canções. Fiquei lá, pasmada assistindo o show, de vez em quando Cássia me agitava pra eu acordar. 

Depois um bar boêmio. "Reduto de poetas, músicos, artistas, cineastas. Lugar que tocou Milton Nascimento com Wagner Tiso", a placa de metal dizia sobre o prédio, intitulado Maletto. A minha coisa com as artes, é meu mesmo sentimento com Deus: amor desesperado que fica desorientando meu entendimento. Coisas inalcançáveis: quero ser santa não consigo, artista muito menos. Bebi duas cervejas então. 

Uma melancolia foi me consumindo, vindo comprida, fazendo-me pensar em coisas que eu não queria lembrar. Tenho que ficar me lembrando que a dor é bonita, que Francisco de Assim teve chagas. Ó sangue e água que jorrastes do lado aberto de Jesus... lembro-me que Cássia perdeu em partes esta tendência religiosa. Não casa bem com essa selva de pedro e cimento, onde cada saída corresponde à uma hora dentro de um ônibus. 

Tauane cozinhou feijão, trouxe frutas. Tem um jeito bravo, visceral, mas extremamente amoroso. É pessoa terna que sabe acolher a gente, que faz salada de três vegetais por puro cuidado. Cássia e eu assistimos A Sociedade dos Poetas Mortos, ficamos em silêncio no escuro deste filme. Curamos um pouco com o show da Banda Mais Bonita da Cidade e de Todos os Caetanos do Mundo. Agradeci a Deus por essa nova geração que não parece disposta a deixar morrer a música. 

Cássia quer tatuar um beija-flor. Seu pai achava que quando um entra em nossa casa, traz sorte. Laura deu à ela uma pulseira com o pássaro estampando, algo sobre o desejo de que ela fosse beijar flores. Beije, Cássia. Beije essa BH azedada, beije essa doença para exterminá-la, beije a vida. Você que foi para Ouro Preto sem ter onde dormir só pra curtir uma festa comigo, você que quis desfrutar do seu corpo sem censurá-lo, você que chorou no Levi, você que sonhou e aceitou a UFMG, você que viveu comigo esse amor pelo Cícero, você que me acolheu tão bem em BH, me mostrando que a cidade não é um monstro. 

Amemos Cícero, amemos poesia, amemos até mesmo nossas doenças, porque, há dias que não há mesmo som de obra ou sol na sala. Um beija-flor bate as asas até 80 vezes por segundo. Vida em desespero ele tem. Desesperemo-nos de amor.

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