segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Entardeceu


Em cima da área da casa que alugo mas chamo de minha, o sol enroseou o céu. Azul, rosa, e aquele branco dissolvido de nuvens arrastadas. Lugar de clima estranho. É janeiro, mas do nada fez frio com vento. Eu fui é pegar minha roupa lavada apertada no balde pra estender lá em cima. O corredor que passa por detrás da cozinha é estreito, e algo nos irrita: o desconhecido lote atrás da casa deixa cair folhas de um bambuzal. Entope nosso ralo, entupindo também nossa paciência estudantil, pequena para coisas de casa. Mas é bonito: o vento bate nele e o barulho é como se o roçar de folhas revelasse mistérios. Chego no terraço. Ergue-se a cidade, tapete de retalhos de torres de igreja, casas muito antigas e modernas se misturam, o trem se anuncia de longe.

Essa hora que vem caindo, desabando sobre o planeta Terra, tempo no qual as pessoas passam no supermercado, pegam o carro no estacionamento e checam os celulares. Horário de pico do dia, onde se esbarram nossas almas automáticas pelos centros das cidades. Momento café com leite, céu nem preto, forte e escuro, nem branco, gelado, e fresco. Mistura dos dois. Hoje eu pensei que a infelicidade que nos envolve só existe porque buscamos desesperadamente seu contrário. Humanamente adoecidos. Em fúria por carreiras, celulares, máquinas, química. Estamos anoitecendo desde novos. Por isso aperto as continhas do terço, por isso Oxóssi tem que ser esperto. Veja Francisco de Assis: andava na mais entristecida das cores, o marrom, abriram-lhe as feridas de Cristo. Alegrava-se no sofrimento. Comoveu-se com os pobres animais, com os cegos, os aleijados. Era triste, e pela ternura branca desta tristeza, foi feliz. E nós sempre com essas caras alongadas de desespero.

Amansa o céu, o calor do dia vai abrandando. As andanças se desdobram em gestos rápidos. De cima das escadas do terraço, vem cheiro de janta. Alguém jogou carne no alho dourado, o ar soa à legumes cozidos. Bate, bate, os pingos de água da roupa reascendem no ar. Lembro da cachorrinha que há um tempo habitou este lugar, desde pequenininha tinha modos tristonhos. Fico pensando, será que não podemos precisar de pouco? Vivemos engasgando no vômito do futuro, comida indigesta que não chegou e somos obrigados a engolir. Tenho que ansiar grande carreira jornalística para encontrar a famigerada felicidade? Não posso ter essa alegria boba de comprar massa de macarrão pra fazer a noite com molho e queijo enquanto acabo de ver o filme do Woody Allen?

As pessoas perderam a ternura, o jeito meigo de amarrar o sapato e abotoar camisas. O gosto de tomar café com um amigo. De sentar na cozinha tirando cutícula, e, conversar com alguém ao mesmo tempo. Abandonamos as esquinas do nosso país, antes habitadas por conversas domésticas. Gente em lata de conserva. Cássia ligou ontem porque está entediada de ficar internada tomando soro, a velhinha deitada ao lado tem Alzheimer. Conversei bobagens com ela falei para escrever sobre a senhora esquecida. Se não escrevermos, o que será de nós? Se não escrevo vou acabando, derretendo, indo embora rápida como o horário transitório do crepúsculo.

Graças a Deus, estou perdendo minha estridência. Se tiver que fazer unha faço conformada, pico os alimentos para fazer almoço, subo sem dor o morro de casa cheia de sacolas de supermercado. Convivo com a alergia e com a burrice universitária com alegria. Vivo em São João e não em Divinópolis mais. Sou órgão do organismo vivo que é a cidade, veias feitas de ruas de pedra, garganta protagonizada pelos sinos. Ficar sozinha fico, um terço me serve bem de companhia. Quando a gente amanhece fica tudo explodindo, mas depois do meio-dia as coisas vão lentamente se acertando. 

Os grandes discursos, ou um trabalho cansativo, uma discussão ferrenha, um serviço torturante. Às seis da tarde a gente volta e ninguém tem mais que sofrer por nada. Neste horário em São João, às vezes chove fininho, uma chuva cicatrizante. Estou aqui sobre essa área de pisos escuros, nesta casa de muros altos e verdes polvilhada por restos de bambu, observando os varais vazios na mediocridade da minha existência, mas sei que lá fora o mundo segue. Um muleque com pé sujo de de terra chuta uma bola, um outro morre de fome na África. Uma mãe amamenta num hospital, minha vó encolhe as perninhas no sofá e assiste a missa na TV Aparecida. Alguém preocupa-se com o emprego perdido. Nada disso importa agora.

Cai a tarde sobre o mundo. 

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