domingo, 30 de dezembro de 2012

Oh, Lola!



Há nela um ritual que consiste numa forma única de cruzar as pernas. A sofisticação com a qual pergunta um irônico “como?”, arqueando as sobrancelhas também é incomparável. O sorriso leve bordado pelos lábios vermelhos, esconde um coração pesado,  já poluído pelo fardo do chumbo de nossas relações humanas, tantas vezes fétidas e deploráveis. Lola requebra ao andar pelas ruas, no ritmo das batidas de seu coração que vive sendo re-quebrado. A moça anda com passos fundos e certeiros, como se cada respirar de sua existência fosse decisivo. Com uma graça meio atrapalhada, ela vai passando pelas ruas.

Permanecendo nas memórias dos olhos que puderam desfrutar de seus passos requebrados. Ela é sempre um vento em cores de roupas coloridas e rodadas, cabelos esvoaçantes, mesmo sem vento (a pressa com a qual caminha, cria-lhe o vento), uma leveza pesada. Assemelha-se àqueles machucados ralos, que soam como meros arranhões, mas que se tornam uma dor chata, que a gente se lembra o tempo todo. Mero risco profundamente marcante. Lola não passará por sua vida sem consumir-lhe por seu cheiro de cereja e frescor, por sua vida desesperadora e pulsante, essa necessidade espalhafatosa de existir que traz em si. 

Lola não ri alto, não fala alto, mas existe alto. Alto são também seus muros, bem guardados por trás da boca pintada, da maciez das curvas cheias e da voz. Os olhos grandiosamente redondos, lhe enrolarão nos cílios espessos e longos, que se movem lentamente, pois ela possui também sua forma própria e hipnotizante de piscar. Seus olhos dançantes, farão dançar até o mais profundo do seu âmago, o mais obscuro da alma. Se elas se prendem em tecidos sensualmente apertados, saltos pontiagudos, cabelos milimetricamente arrumados, Lola roda nas saias soltas em babados, dança descalça pelo salão e lanças as madeixas em todas as direções, exercendo a liberdade da alma aprisionada pelos sinônimos, dor e amor. 

Não queiram tirá-la a acidez. Seu ácido corrói lentamente, sua ironia demora dolorosamente a ser compreendida, sendo a própria presença de Lolita, irônica. Depois de viver e reviver, doer e re-doer, as situações não são para ela mais trágicas e complicadas, apenas divertidas. Logo, a ela basta morder os lábios daquela forma, enrolar os cabelos entre os dedos longos daquele jeito, lançar sem entregar aquele mesmo olhar, e depois recuar divertidamente. A você, basta ser completamente estrangulado nas cordas de seda da doce praga. 

Ninguém consegue possuí-la por mais de alguns olhares, nem ela mesma se possuiu. A lei regente de não se deixar aprisionar que traz em si, aprisionou-a na mais confortável e gélida chama da fugacidade, do sempre envolver, mas nunca ser envolvida. Ela é um desafio desejado, mas nunca aceito. É veneno inofensivo, doce crueldade, uma bondade obscura como torres de mosteiros. Por trás de todo o seu ácido estranhamente delicioso, há um coração doce, não descoberto, inimaginável. 

Lola é a vingança a respeito do homem, da sociedade, da imaginação dissolvida, da menininha morta de morte matada e imposta, da amadurecência. Oh Lola, quem ousará te encontrar? Logo você, que é puro desencontro.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Diminuto, de minuto.


Eu sou só uma ideia flutuante, 
possuidora de certo dom cicatrizante,
dou tempo demais ao tempo, 
e aos dilemas falidos que invento.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Carta a mim mesma.

Cara Sarah,

É estranha a sensação de estar aqui comendo este brigadeiro e pensar que em algum momento, todo esse doce se tornará gordura quase crônica, porque com o passar dos anos o meu ânimo para emagrecer que já é bem pouco, se esvairá até desaparecer por completo. 

Os meus problemas com peso são cômicos, por perdurarem por tanto tempo. Espero que ao ler esta carta daqui a uns quinze anos, eu já os tenha superado. Aliás, é por isso que dedico-me a ela neste instante. Preciso, num futuro, prevenir-me de algumas coisas e lembrar-me de outras. 

Tenho dezesseis anos, sensação física de uns vinte e alguma coisa, mente de uns quarenta e cinco, concebida por muito convívio com pessoas, ideologias, oportunidades e situações. E por que não colocar também meu próprio mérito em minha atual concepção das coisas? Talvez uma outra pessoa não visse a vida com meus olhos, mesmo se a tivesse vivido de forma idêntica. Afinal, a personalidade é essa coisa misteriosa e indecifrável, na qual os fatores externos são recebidos de forma diferente por cada pessoa. Em um, o doce torna-se amargo, noutro, amargo se torna doce. 

O fato é que não sei se me orgulho ou desprezo por aquilo que me tornei. Pois, sinceramente, é muito antipático ter antipatia da sociedade. Quero superar tudo isso. Eu realmente queria me encaixar, queria pertencer em totalidade a algum lugar. Por outro lado, é engrandecedor libertar-me dos paradigmas e conseguir construir-me absorvendo aquilo que é coerente para mim em cada lugar, mesmo que isso cause um isolamento social e coloque minh’alma num eterno estado de agonia. Chega um ponto, que ser feita de vários caquinhos de vidro, poderá me conduzir a dois caminhos: posso tornar-me um vitral colorido, quase canônico, que flutua acima da banalidade com o jeito simplório que os sábios possuem, ou apenas uma infinidade de cacos que não combinam entre si, sem contexto ou beleza alguma, possuindo como capacidade única o “dom” de cortar. A segunda opção são as pessoas que sabem demais sem saber de nada, sempre regurgitando fel intelectual sobre os outros. Abomino a ideia de ficar assim. 

Talvez esse seja meu maior objetivo para daqui a alguns anos: superar essa minha indecisão, esse coração flutuante, o não saber quem se quer ser. Apesar de que, sinceramente, acho que vou morrer sendo mil e uma, pertencendo e indo, querendo e não querendo. Esse é um aspecto meu que vem se acentuando com o passar dos tempos, não imagino o processo contrário começando a partir de agora. 

“Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem”, disse o poeta de Minas. Desculpe-me mestre, mas terei que discordar. Com o passar dos anos, as palavras meta, objetivo e estabilidade, aparecem em substituição às palavras sonhos, vontades, ideias. A garotinha que sonhava em ser professora desiste, pois lecionar não lhe renderá uma boa situação financeira, o músico torna-se músico nas horas vagas e matemático em tempo integral. Quem dança, canta, atua; vai contar, construir e pesquisar. Será que eu vou seguir escrevendo? 

Será que daqui a alguns anos, sairão de mim parágrafos que vão além de relatórios técnicos? É quase humilhante ter que admitir, mas acho completamente possível que a sociedade me corrompa com seu capitalismo que não é um sistema econômico, e sim um estilo de vida imposto ao mundo. Serei eu dissolvida nesta sopa econômica? Vou aprender a enxergar somente meu umbigo, lançando em seu interior aquilo que me farão acreditar que eu necessito? Se não conseguirem quebrar os meus princípios, é provável que me coloquem num estado de comodismo consciente, o que é muito pior. Desta forma, lerei o jornal, agirei com consciência em todas as circunstâncias, mas não gritarei para o mundo fazer o mesmo. Inteligente e quietinha. Infelizmente, é assim que me imagino daqui a algum tempo. 

Se eu estiver assim, pode parecer complicado, mas dá para, por favor, se mover, dona Sarah? 

Lembra-se dos olhos brilhando, do amor nutrido pelas pessoas e pela arte? Lembra-se das lágrimas inconformadas pela não compreensão da maldade do mundo? Então, por que toda essa frieza conformada agora? Pode ser que com trinta anos eu não pense mais assim, mas acredito que se nosso ardor adolescente, movido pela confusão e as ideologias fossem mantidos por toda a vida, aquele nosso velho clichê que lá pelos vinte se torna cafona se concretizasse: mudar o mundo. 

Daqui a tantos anos essa carta pode soar ridícula. Um devaneio, uma “coisa de adolescente”. Mas se ao menos uma lágrima, ou um sorriso sincero ela me arrancar, quer dizer que não está tudo perdido. Algo permaneceu vivo aí dentro. 

Atenciosamente, 

a Sarah de dezesseis anos.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Nada, não.

Nada tem saído direito.
não sei mais escrever,
não aceito minhas próprias escolhas,
a noite me abandona,
não abandono o que eu deveria abandonar.

o homem é mesmo o lobo do homem.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Fita Amarela.



É, vô. 

Eu não sei se é uma conclusão que aparece apenas por cima de toda essa saudade apertada que tenho de você, mas a verdade é que nada me tira da alma (vai além do que está na cabeça ou sinto no coração) que somente você compreenderia as confusões intermináveis em mim. Mas é tanta a minha vontade... tão inflada, pode ser considerada das dimensões de um sonho. Essa ânsia que é sonho, de poder só mais uma vez sentar no outro sofá, porque você se esticava todo em um, com aquelas meias horrorosas para circulação nos pés. E falar. Falar, falar, falar. Despejar essa alma cheia de nós sobre seus ouvidos serenos e compreensivos, e só nisso já estaria a minha redenção. 

Eu compartilharia com você o meu gosto por histórias, e meu desgosto pela não compreensão dos rumos deste mundo. Você, com seu gosto em sempre discordar de absolutamente tudo, diria: “Sarinha, o mundo não é assim não. Tem muita gente boa por aí”. Ou falaria algo imprevisível, pelo gosto que tinha não só de contrariar, mas de ser problemático, questionador, complicador. Um traço que particularmente herdei. Afinal, o que esperar do homem que possui a ousadia de questionar um distinto pastor da igreja? “Pastor, o senhor vai me desculpar, mas se Deus mandasse o senhor matar seu filho, o senhor mataria?”. “Mataria, seu Zé, devo obediência ao meu Senhor”. “É, então eu num devo não, porque eu não mataria filho meu nenhum, se Deus pedisse. Nunca vi isso, Deus pedir pra matar filho, uai.” 

É, seu Zé. Quem não te conhecesse, que te comprasse. Eu compraria, com toda infinidade de defeitos e imperfeições (santo nunca foi mesmo e tal contestação é inegável), por essa tendência que tenho de enfatizar as coisas boas e esquecer as ruins das pessoas que amo. Não foi o melhor pai do mundo, muito menos marido, mas o avô dos meus sonhos. Que sonho seria tê-lo aqui novamente, vô. 

Lembro-me de quando adoeceu, e quase morreu de tristeza por não poder mais passar o dia batendo perna e conversando fiado. Vivia conhecendo pessoas e histórias, diferentes tonalidades de céu, lugares. Vendinhas, minas de água, igrejinhas. Pequenos passeios, de bermudas confortáveis e chinelos fuleiros. Felicidade simples e completa, que eu, senhorinha muito honrada, afinal desfrutei de tudo isso ainda na inocência e pureza de criança, pude participar. Estava sempre pendurada na sua mãozona por todos esses lugares, brigando enquanto você insistia em dizer que tinham me achado na lata de lixo. Ô brincadeira que me irritava, viu. Irritava por décimos de segundo, até você me encher de doces e eu esquecer completamente a história do lixo. 

Se trago em mim esse gosto pelas humanas, principalmente História, é certeza que minha genética está incluída em tal fato. Lembro-me de emprestar-lhe meu livro didático de História quando você já não podia sair, e de você lê-lo inteiro em um curtíssimo espaço de tempo. Com fala calma e reflexiva, contar-me a respeito do que havia lido, comentando nossa confusa e sangrenta História Mundial. Nenhuma revolução, guerra civil, toda essa parafernália política na qual tudo sempre foi mera questão de interesse, pareciam tão repugnantes quando saídas de sua boca. A voz mansa, os olhos verdes brilhantes... a suavização da maldade humana. Por alguém que nada daquilo viveu, mas que conseguia falar como um ex-combatente cansado e sonhador. Pois o era. Toda vida é uma batalha. 

Queria a doçura envelhecida da sua alma suavizando a minha vida barulhenta, corrida e confusa agora. O mundo não é para nós, vô, almas que gostam da calmaria. Eu não queria o som dos gritos desesperadores, dos prazos, das obrigações. Queria o som do arrastar dos seus chinelos. As dores que sentia nas costas, pelo cansaço de uma vida sofrida, são infinitas vezes mais nobres que as minhas, por horas sentada estudando, lendo, aprendendo. Absorvendo tudo sem saber de nada, enquanto você nada precisava absorver, mas sabia de tudo. 

Eu contaria sobre tudo, absolutamente. Você entenderia mesmo sem a capacidade de entender que nem eu mesma possuo. Compreenderia por exemplo, a necessidade que tenho das pessoas, e a necessidade de querer não necessitá-las. É tanta bobagezinha vô, tanta coisinha sem importância dentro de mim, que não há quem nessa face da Terra as tenha como relevante, mas que você, seu Zé, daria importância extrema. Sei que entenderia que o acúmulo das coisas bestiais, torna-se um peso amargo de quem não consegue chorar por nada. Pois vô, me disseram uma vez, “é você quem dá o play”, e nem sei se em vida, você soube o significado de tal palavra, mas só sei que não é verdade. Como eu queria o controle, mas o senhor veria também em mim, por baixo da serenidade, o descontrole. Não dou nenhum play. Nem no que sinto, nem no que quero, nem no que sou. Só sei disfarçar, só sei dar nós. 

Todos os meus nozinhos adquiridos, seriam desatados quando você novamente dissesse: “fia, come um docinho de banana.” Eu, com gosto e sem resistência, comeria. Os dedos sujando de açúcar, o açúcar limpando a alma por dentro. A alma pateticamente complicada. A alma, que vire e mexe lembra-se do avô, dos chinelos, do cantarolar pelas ruas “quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela”. A alma silenciosa, que pensa e repensa sobre tudo que se passa, sobre tudo o que se quer, sobre tudo o que é, e dos fios enrolados do pensamento, só chega a uma conclusão: como eu queria meu vô aqui. 

E se lhe chamo de você, é porque não aprendi a chama-lo de senhor. Nunca houve formalidades entre nós, vô. Posso quase dizer, que era o meu amigo de infância, como o de uma criança que não tem amigos e idealiza um amigo imaginário fantástico. Um personagem completo você sempre foi: personalidade excêntrica, óculos, chinelos, a fita métrica ao redor do pescoço quando estava trabalhando ainda como alfaiate. Eu no terraço, você também, costurando. Seu Zé Alfaiate. Você sou eu, vô. Estou em você aí, eu sei. Sou a neta achada na lata de lixo, mas que recebeu seu último abraço. Você é quem me tira as lágrimas que não conseguem sair. Obrigada, vô. Por além de tudo, lavar a minha alma.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Caçadora de nós.

Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim.
Doce ou atroz, manso ou feroz. Eu, caçador de mim.
(Milton Nascimento, Caçador de Mim.)


Toda poesia do mundo
 se encontra dentro de uma alma sensível.
Essas raras,
porém docilmente inacabáveis,
claras e castas almas.

Toda a canção
se encontra nas batidas de coração
que ama.
Toda arte tece uma trama.

Com gosto de nuvem e desejo de viver.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O borrão.

Ele abre a porta sem fazer questão de esconder o sorriso sacana que traz nos lábios. Ela sabia. Vinha tremendo desde o momento que havia deixado sua casa. Na verdade, tremia desde o seu “sim” ao telefone. Ele dissera, “Hoje a noite vou ficar sozinho aqui na república. Vem aqui?”, e o sim que ela dera não era para essa pergunta. Era o sim para o sexo. E o adeus a sua virgindade.

“Oi”, ela disse desfiando os olhos para baixo. O tremor em seu corpo atingira um grau incalculável. Não sabia onde colocar as mãos, ou o que dizer. Sua expressão corporal o implorava: aja, eu lhe suplico!
“Oi”, ele riu. Superior, tranquilizante. Ele era lindo. Sem mais delongas, pois ambos sabiam o que iria acontecer ali, ele a puxou para dentro. Bateu a porta, prensou-a na parede e começou a beijá-la. A sensação era boa, mas puramente física. Assim como tudo entre eles. Entretanto, era inevitável sentir-se protegida nos braços de alguém, mesmo que essa alguém só buscasse apertá-la para seu bel prazer. A frustração que ela sentia no frio do pós-contato quando ele a deixava, era compensada nos momentos juntos. Os beijos que por parte dele eram frívolos, mesmo que momentaneamente, aqueciam-na até a alma.

Ele lançou-a sobre a cama, ambos só de peças íntimas. O peso daquele corpo masculino sobre o dela, lembrou-a brevemente o peso em sua própria consciência. Queria sustentar a ilusão de ser especial, mas era estúpido demais cogitar tal hipótese. Até para ela. Afinal, a consciência era suavizada pelo consolo. Teria que aceitar as migalhas mesmo. Aceitara as migalhas do afeto dos pais, migalhas de família, amigos esfarelados. Precisava consolar-se com as migalhas do amor também, contentando-se somente com sua face mais miserável: o prazer físico. Há tempos estava machucada pela vida injusta a qual vivia, e essas migalhas nunca traziam felicidades. Contentava-se com os piques de alegria. Deixou-se ser subjugada, possuída. Dolorosamente usada. Somente para desfrutar do seu mais novo e fascinante momento de alegria, de sentir que alguém a necessitava e queria, ao menos para sentir prazer.
Quando tudo acabou, ele beijou-a na testa. Num ato cínico que transparecesse algum cuidado inexistente, contrastando com o sentimento que ele trazia em si: vitória, mais uma entrega alimentadora de seu ego machista.

Diferentemente do que um dia sonhou, não podia passar a noite lá com ele, entre velas apagadas, carinhos, declarações de amor e muito cuidado. Precisava ir embora, para dar satisfação aos que chamava de pai e mãe. Despediu-se dele e foi embora, sentindo aquele processo da necessidade do sexo desencadear dentro de si. A busca constante por mais momentos de êxtase e importância, por mais passageiros que fossem. 
Foi-se sendo só mais uma mancha de sangue sobre os lençóis dele. Tornando-se cada vez mais somente uma mancha. Ela própria, uma mancha por inteiro. 

sábado, 15 de setembro de 2012

Simples assim.


Menininho,
Com sua calça de flanela,
Só quer olhar pela janela,
E pelas ruas passear.

Pequenininho,
Mamãe tem que trabalhar,
Vovó tem que cozinhar,
Na mesinha do quintal foi se sentar.

Quietinho,
Ele se pôs a colorir,
Pros seus desenhos vai sorrir,
Nessa arte de não se importar.

Ser dudu.



Faz-se verdadeira vocação profética, um dom, e também uma sina nascer dudu. De fato, é algo que realmente se nasce sendo. Entretanto foi consumado quando lá pelos seus cinco anos, ainda de cabelos dourados e cacheadinhos, o pai lhe aparece em casa com dois lindos perequitinhos na gaiola. Um amarelo, o outro azul, de biquinhos duros e curtos, cruéis em bicadas. E foi olhando bem naqueles olhinhos pretos e serenos de pássaro engaiolado que tudo foi definido quando o pai perguntou: “Como esse vai chamar, Sarah?”, e aponto para um dos bichinhos. Refletiu rapidamente, pois em mente de criança não há complicação e indecisão, ou opções secundárias desnecessárias. Sabiamente escolheu, e assumiu sua sina: “É Dudu.” 

O pai entendeu primeiro que ela mesma, antes do resto do mundo: ela nascera dudu. Aquele modo sereno e decidido, não deixava sombra de dúvida: dudu era mais que o pássaro, dudu era ela. Ela teria que assumir a triste e bela sina de carregar em si o ser dudu, onde se cresce tropeçando em cada passo. Duvidando de tudo e acreditando em todos. 

Uma dudu sempre teima em assumir sua duduzisse. Falava com o pai, que insistia em chama-la assim: porque não pôs meu nome de Eduarda? Ainda assim, o certo seria chamar-me Duda, não é mesmo? Pobre coitada, não entendia que ser dudu pairava sobre a banalidade de simples apelido. Mas enfim, acaba por entender-se na pessoa dudu, quando vê todos sorrindo e não tem vontade de sorrir pelo mesmo motivo que eles. Quando os seus sorrisos são incompletos diante das alegrias, e suas tristezas aparentemente inexplicáveis. 

É típico de uma dudu ser completamente desatenta, desatada, atada demais em conceitos soltos para se justificar com plenitude ou se entender. Viver com a cabeça nas ideias por trás dos fatos e entendendo quase sempre que não dá para se entender. 

A confusão não é mera coincidência caro leitor, é a palavra de ordem dessa vida dudusolesca. Nunca se sabe das meias, das folhas de exercício, se os óculos estão na pia do banheiro ou no quarto, ou aonde se encontra aquela cosquinha do coração que vive fugindo ou dançando lá. A perda constante consiste também em perda e ganho de si mesma. Aquele pedaço bobo e egoísta que estava aqui ontem se perde e se dissipa, para que aquele nobre pedaço, vindo depois de um sorriso de criança ou flor florescida em meio à pedra, possa crescer. É uma confusão estruturada nas bases do novo, do incerto. Do eterno medo da vida, do passar por ela e esquecer-se de viver. 

Uma dudu vai sempre olhar um casal de mãos dadas e acha-los infantis, mas está sempre querendo segurar as mãos do mundo inteiro. É uma eterna caçadora de olhares, degustadora de sons de risada. Gosta de batons vermelhos e vestidos rodados, e de rodar nas nuvens ao olhar para o céu até ficar tonta. Ama o mundo com uma intensidade de não caber-se em si de alegria para logo em seguida sentir todas as dores dele, nela. E pensar: como vamos fazer? 

Dudus querem ser cacos de um vitral, como no livro da Adélia. Mas seus cacos são desconexos, são mal elaborados. Não parecem capazes de se unirem numa imagem bela, canônica, colorida. Trazem em si esse aspecto cortante, de quem quer fazer um belo bordado mas revira o tempo furando os dedos com a agulha, criando máculas de sangue no tecido. Cansativamente lava-o, tenta recomeçar aflita. Quer tentar, tentar. Mesmo sem saber como. 

A dudu vê um filme e percebe: há tantas pessoas tristes pelo mundo. Então acha seu sorriso egoísta. E mesmo que não achasse, já perde a vontade de sorrir.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Amável libélula.

"Nothing you can sing that can't be sung."


Eu sou daquelas pessoas que vai andando pela rua enquanto deixa o pensamento passear. Confesso que às vezes é meio complicado, porque é tudo tão controverso... começo a pensar algo de um ponto de vista até me perder em minha própria essência de pensa-lo, vendo que de certa forma tudo pode ser exatamente o contrário daquilo que minhas ideias me fazem acreditar. É a análise sábia e conclusiva, aquele estudo quase científico das coisas que às vezes me aparecem. Logo em seguida me vejo com pensamentos de poeta, que tudo é nuvem fácil de ser dissipada, sem firmeza ou certeza alguma. Nem em morte posso crer, se há vivo que já está morto, se meu Senhor ressuscitou para pela morte dar-nos vida. 

Por exemplo, eu não sei se creio ou descreio no mundo. Esses dias, vi uma moça destratar cruelmente uma trocadora de ônibus, que educadamente pediu que ela se apressasse em descer se o fosse fazer, pois o ônibus tinha horário. Machucou. Eu sei que doeu na trocadora, porque é amargo demais trabalhar o dia inteiro, ganhar pouco, para ouvir moça desaforada (e sem razão) te maltratar. No supermercado, não há brilho nos olhos dos caixas. Por trabalhar tanto, por ganhar tão pouco, por ter quer viver aquilo e ainda sofrer desaforos como a trocadora do ônibus. Eu vejo cara amando corpo de garota e não a garota em si.  Mas vejo garota amando roupa, cabelo e maquiagem, se coisificando desta forma e portanto não podendo reclamar da coisificação que o cara faz dela. Completamente obcecados com a aparência. Quando resolvo sair, não sei se rio ou choro: todos os carinhas com os mesmos cortes de cabelo, usando as mesmas roupas. E as meninas então? Se a tendência é saia e blusa de cetim, todas de saia e blusa de cetim, se é tênis de salto todas de tênis de salto. Coisas que às vezes consideravam ridículas, mas por todos estarem usando, acabam usando também. Falta de personalidade explícita. Entristece, já que a essência do ser humano é saber pensar, decidir por si próprio, ir se construindo pela vida e desta forma se diferenciarem. Vida: dinheiro, festa, farra, instinto. Amor? Egocentrismo, necessidade de ser orbitado por alguém, de se sentir importante. Amante de música como sou, vejo as pessoas ouvirem essas músicas de iguais ritmos, iguais letras sem conteúdo. Dói saber que há tanta música maravilhosa por aí pronta para ser achada, porém o lixo simples de cinco frases de letra é mais fácil de ser digerido, desnecessário de se procurar. 

Ouvir frases do tipo “odeio política”, “voto em quem me fizer algo”, “odeio o Brasil, e a cultura brasileira”, e até mesmo os “eu te amo” ultimamente, vai dando aquela preguiça de viver, de enxergar certas coisas. Você para e pensa: não tem jeito, cara. Não tem. 

Mas sei lá. O pôr-do-sol lá da minha escola, depois de um dia cansativo de aulas é absurdamente bonito. Hoje eu voltava da missa umas oito da manhã e o centro da cidade estava estranhamente belo: silencioso, pessoas passando com uma seriedade calma com seus copos de café com plástico por cima, indo trabalhar. As fachadas de algumas lojas são realmente bonitas, sabe. Por exemplo, é quase mágico olhar os lustres maravilhosos numa loja que os vende chamada Lampadário. Além de lembrar-me a minha vontade infantil de querer me pendurar em um lustre e ficar balançando. Criança é tudo, não é verdade? Quando pego meu priminho e afilhado no colo, ele deita a cabeça em meu ombro com toda a serenidade que só as crianças sabem ter. Às vezes acordo com uma sede de mudar o mundo, e se eu sorrir e falar “bom dia” para moça do caixa do supermercado ou do ônibus, já o fiz de alguma forma. Se foi pouco, tenho o amanhã para fazer algo mais. Talvez seja um pouco mais escrever algo aqui que de alguma forma aqueça o seu coração, talvez seja um pouco mais abraçar os amigos. O talvez é graça das coisas, sempre pode ser um sim ou um não. Pode ser um sim hoje e um não amanhã, ou vice-e-versa. 

Sei não. Toda revolução ou ideologia foi distorcida de alguma forma, virou em algum momento o interesse do mais forte. Ainda sim, estamos aí (alguns de nós), maquinando ideias, pensando em fazer algo, apesar de às vezes ficar tudo só no “E se”. Há por aí, corações que vibram com as notas de uma boa música, boa música ainda é feita! Não importa quantos Catra, Gustavo Lima, Michel Teló, sempre haverá Tiê, O Teatro Mágico, Los Hermanos. As coisas vivem perdendo a essência, sendo vistas de forma superficial. Às vezes até parece que não se pode confiar em ninguém, que as pessoas não conseguem compreender as coisas por mais que sejam explicadas, parecem não sentir nada. Ainda sim, de repente alguém olha nos meus olhos e eu vibro: naquele olhar tinha sinceridade, ele dizia: sim, eu sinto. Graças a Deus, vivo cruzando com pessoas desses olhares. 

Cheguei em casa depois ter ido à missa e ter passado no banco. Aliás, o segurança foi tão simpático comigo, que acabou por desequilibrar a balança do “creio, descreio”, para o lado do “creio”. Fiz café. Às vezes acho que gosto mais do café pelo cheiro de conforto que ele tem do que pelo seu gosto, assim como às vezes gosto mais dos olhos de quem me fala do que daquilo que a pessoa me fala.

Ao chegar em casa, havia uma libélula virada para cima no chão da cozinha. Ela estava agoniando e esperneando sem conseguir se virar para voar. Parecia estar machucada, também. Virei-a para cima, fui fazendo o café tomando o maior cuidado para não pisá-la, enquanto ela deliberava por voltar a voar agora ou voar mais tarde. 

Eu sei, esse texto pode soar imensamente ingênuo e infantil, coisa de quem vive nas nuvens. Mas talvez seja isso que nos falte, a ingenuidade, a simplicidade. Porém a ideia “o mundo é dos espertos” nos enche de “esperteza” irônica, estressante, maldosa, desconfiada, insensível. 

Eu realmente creio que a libélula merecia a vida, até abri a janela para ela voar. Não sei seu destino, só sei que quando olhei para o chão ela não estava mais lá. Só sei que acima de toda confusão, quero ardorosamente viver.

domingo, 12 de agosto de 2012

Tons de cinza.



Através da porta de vidro entreaberta ele a via recolher as roupas do varal revolto pelo vento impetuoso,  que também fazia entrar-lhe pelas narinas o cheiro confortante da chuva próxima. Conforto. Adorava o cheiro da almofada com a qual estava abraçado, era a que ela costumava se deitar e cheirava doce e suave como seus cabelos. Cabelos com os quais ela brigava agora, com a cesta de roupas sob um braço. Com a mão que recolhia as roupas, tinha também que limpar o rosto dos cabelos que o vento insistia em jogar em seu rosto de anjo. Anjo caído, como ele costumava lhe dizer. Porque ela tinha no rosto aqueles traços serenos e os olhos grandes e brilhantes como as divindades angelicais, mas também trazia sempre aquela expressão de consciência dos sofrimentos deste mundo, os quais os aéreos e perolados seres do Senhor não possuíam. O cheiro do refogado de frango ainda na panela também serpentava, mesmo que agora timidamente, pelo ar. Os pratos ainda estavam sujos, e ele estava apenas descansando um pouco para ir limpar. Aquele refogado estava incrível. O quanto ele estava se fartando desde que ela havia se mudado para lá, era inimaginável. Vivia como um rei para quem anteriormente sobrevivia a base de congelados, café e omelete. Agora tinha uma fruteira cheia de cores, verduras frescas diariamente, o famoso e já esquecido por ele almoço de domingo e aquela voz de sino cantarolando diariamente pela casa. Ligou o rádio na modesta prateleira de latas na cozinha para se distrair enquanto lavava os pratos. 

Dias soltos no quintal, vão me dando a direção. 
Se você perguntar o que eu fiz, se você quer saber o que eu quis.

Como alguém podia ter aquela serenidade, aquela alma dilatada que sempre cabia mais amor e também mais dor, olhos vividamente brilhantes e belamente tristes ao mesmo tempo, estar tão envolta em mistério e revelação paralelamente, ele já cansara de se perguntar. Ser toda serviço, ouvidos, divindade. Vida pulsante e desesperadora. Se acreditasse em bruxarias, afirmaria sem dúvidas que havia lhe lançado um feitiço mais que certeiro. Lembrava e degustava com gosto todas as lembranças, de forma especial as vezes que observando o luar do apartamento da casa dos pais dela, ficavam contemplando a lua em silêncio, descendo às profundezas do universo e daquele amor em tons pastel. Cores coloridas, porém calmas. Tudo que sentiam era nobre e grande demais para ser dito, sentido por inteiro de alguma forma. Traduzia-se no silêncio dos olhos que mergulhavam profundamente uns nos outros, devorando a alma alheia, refugiando-se no grande bombeador de sangue e sentimentos. A sensação que ele tinha de se ser em outro corpo que era o dela, não era suficientemente explicada de forma alguma. Como ele recordava o café ao som dos Beatles, as ideologias da qual gostavam de debater as falhas para quando fossem salvar o mundo, corrigirem erros que levaram ao fracasso. Despertava nele um profundo respeito e grande admiração, quando ao contar-lhe qualquer atrocidade a respeito de nazismo ou afins, via os olhos da amada marejarem de lágrimas, a confusão de uma alma boa demais para compreender a maldade do mundo. Quando ficavam juntos, deitava sobre seu peito só pra ouvir aquele coração palpitar aquela maravilhosa existência permitida por Deus. 

“Cara, o quê essa guria te fez, me conta?” ouvia dos amigos, às vezes em tons de pilhéria, às vezes incompreensão. Ele sorria sem graça por não ter uma explicação. Diria se achasse que valia a pena: “Entra neste peito aqui e sente. Sentiu? Pois é, monstruosamente grande, né.” 

“Um dia vamos sorrir, uma lágrima comovida por Deus permitir a nós essa felicidade tão completa e simples vai rolar. No outro, os olhos vão se encontrar sem brilho e na boca haverá o gosto da amarga confusão, porque não saberemos explicar como ou o porquê de ter simplesmente acabado.” Ele lera em seu caderno de versos, era o único que podia abri-lo e adentrar no universo dos pensamentos dela. E por mais que tivessem aquele trato de ele nunca pergunta-la sobre nada que escrevia, teve que perguntar desta vez. 

“É sobre nós?” 

“É.” Respondeu-o  olhando daquele jeito que seus olhos diziam mais que as palavras. 

“Discordo” ele dissera com cuidado, pois quando se falava dos seus escritos era necessária toda cautela. “o que é verdadeiro nunca acaba” e entrelaçou seus dedos nos dela. 

“Toda a perfeição acaba, porque nada deste mundo pode ser perfeito. Só Deus é.” 

Esse episódio preencheu de dor o coração dele. Mas o sol intenso que emanava daquela vida partilhada com ela, acabou por fazê-lo esquecer daquilo por um tempo. Agora, acabando de enxaguar a espuma dos pratos, se lembrou do acontecimento com a amargura citada nos escritos dela. Estava acontecendo. 

O ódio e a repulsa por si penetraram sua alma confusa fazendo-o provar um pouco do inferno, ao ver que toda a devoção, todo o amor incabível, toda aquela magia entre os dois não o fazia feliz mais. Impossível entender: era o mesmo encanto sentido toda vez que ela se aproximava. Mas era como se estivesse cansado, acomodado numa felicidade clandestina demais para um mundo tão ruim, com tantas falhas para corrigir. 

Voz, nuvens, cheiro de conforto e comida, estabilidade, sorrisos fáceis, pés descalços, preguiça de sofá. Não dava mais para se viver flutuando, acabar com todo o sofrimento assim. Não se pode neste mundo, envolve-la nos braços para sempre e agir como se aquela vida fosse o centro de tudo! 

A verdade é que a frase “só seu amor, e tê-la aqui me bastam” que ele tanto proferira convicto a ela diversas vezes havia se tornado uma mentira. Não bastava mais. Um incômodo no peito lhe crescia e a luz de sua menina parecia agora ofusca-lo, mesmo ele ainda amando se aproximar daquela luz. Ela sabia desde sempre: toda vez que ele dizia-lhe isso, ela murmurava um risinho irônico e amargo. Amava-o, mas sabia que era um imbecil, que acabaria por decepcioná-la em algum momento, e que não adiantaria nem um amor que de tão grande era inexplicável para salvá-los da droga que ele era, da droga que sentia-se agora. 

Ele amava, ele admirava, ele se encantava. Mas ele não queria mais. 

Acabou de lavar as coisas, lavou e enxugou aos mãos. A música do rádio ressoava, com um hino de consolo e desconsolo, explicação inexplicável. 

Ah, o tempo passa e eu penso demais
Pra dizer ao vento que me satisfaz.


Vento bom, os dois. Bom demais, levava as nuvens embora e deixava o sol brilhar. Mas o calor que vinha era bom até certo ponto, depois tornava-se insuportável e precisava de chuva. 

Ela abraçou-o por trás, o cesto com as roupas limpas jogado sobre o sofá. Virou e apertou-a em seus braços como se quisesse mudar de ideia com a intensidade daquele contato. 

Não mudou. Suspirou agonizado. Como explicar que aquela felicidade estava incomodando, que a amava e sabia que lhe era perfeita e certa , mas que precisava deixa-la? Talvez fosse fácil se libertar, talvez houvesse um depois que trouxesse conforto a ideia: podiam chorar copiosamente, necessitar do calor do outro e com um reencontro desesperado sentirem-se suficientes um ao outro novamente. Talvez ele a magoasse e reconquistá-la fosse uma tarefa ardorosa e despertadora da sensação de estar mais uma vez completo pela menina da sua vida. Era necessário o fim infindável. 

Ela entendeu o suspiro, ele sabia. A percepção intuitiva dela era insuperável, um piscar de olhos bastava para a sua menina. 

“Tá tudo bem. A vida é assim mesmo.” 

É. Só Deus era perfeito e infindável. 

E eu sigo
E eu minto 
E eu sinto


(OB: Trechos e inspiração da música Hotel - Sabonetes.)

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sei que é claro, mas preciso falar que estou vendo.


Redispor a mesa e a disposição.

Antigamente, nossos jovens saíam às ruas e lutavam. Clamavam liberdade e igualdade, atentos a mãe-terra, pediam pela natureza. A voz de uma ditadura foi sobreposta enfim por uma juventude brava e guerreira. Queimavam sutiãs, organizavam protestos, punham flores em armas prontas para atirar. Defendiam à sua maneira; o seu, o do outro, o mundo. Houve em algum momento nessa história, um mundo de idealistas, palpites e sugestões, artes de mensagem, não só de entretenimento. Saíam dos peitos, uma raça retirada da ânsia dos sonhos, uma força grande e transformadora, um desejo de informar e transformar.

Hoje, você vai para escola forçadamente, estuda só para passar de ano, ouve o que estiver na moda, assiste realities-show completamente vazios. Todo o sentido da sua vida se define em esperar aquela festa no fim de semana. Você vai lá ver um cantor que não consegue compor uma música de mais de cinco linhas, beber, beijar quem nunca viu na vida, e depois ficar comentando o quanto aquela festa “estava boa”. E vai trabalhar e se for mais ambicioso estudar, para ter mais daqueles divertimentos ou alguns divertimentos mais caros e sofisticados.

E apesar de não existirem lutas, as derrotas estão é sobrando. Derrotas que você acredita serem vitórias. Desta forma, pelo mito da tecnologia, da ciência, da grande mídia, da inteligência, há quem pense que nosso mundo está evoluindo.

O que eu julgo impossível se vejo grande parte da população regredindo. Estagnando. E o que é pior: os que conseguem enxergar a realidade e entender a situação estão simplesmente se acomodando.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Ê, vó.



Qualquer forma de indignação, xingamento ou desconsolo é inútil, meus caros. É da essência do idoso ser teimoso e birrento, ter o desejo de impor suas vontades. E raciocinem comigo: nada mais justo que isso! Alguém já tão vivido, tão sofrido (pois bem sabemos as infindáveis dificuldades desta vida), que já deve ter levado sobre sua coluna cansada inúmeros desaforos,  deve possuir o direito de erguer a voz contra aquilo que o insatisfaz nesse nem um pouco pleno fim da vida! 

É por isso que mesmo vendo minha mãe espumar de raiva às vezes (contra sua sogra ou a própria mãe), impaciente com as coisinhas da idade de ambas, a única coisa que sei fazer é rir com tantos problemas e reclamações por situações criadas nas cabeças brancas das avós, defeitos onde nós não enxergamos por eles não existirem. É a perna, o xampu que causa irritabilidade aos olhos, a dor de cabeça, a coluna, a dentadura, o filho desaforado... uma canseira sem fim, desmerecedora da dor de cabeça dos familiares aflitos.

Esses dias, ao chegar à casa de minha avó maternal, eu e minha mãe podemos presenciar uma das reinações de dona Nair. Em frente sua casa há um pequeno morro de terra, no qual minha mãe na maioria das vezes atravessa o carro para lá, de forma a deixa-lo bem na porta da casa. Neste dia isso não aconteceu. Estacionou o carro do outro lado da rua e ao chegar ao pé do morro, lá estava a minha avó. Fazendo o quê? Foi exatamente o que minha mãe perguntou. 

_ Uai Sueli, a mulher que mudou pra cá é desaforada demais, _ agora pude perceber que ela quebrava grandes pedaços de isopor para enfiá-los num saco _ pegou esses trem que vem quando a gente compra televisão e jogou tudo aqui na porta de qualquer jeito. 

Minha mãe estava de braços cruzados, enquanto minha vó ia quebrando enfurecidamente o isopor para que coubesse na sacola. Falou com uma voz de quem acha um pouco de graça. 

_ Mas a senhora é boba demais mãe, vai ficar catando o lixo da mulher? 

_ Não é ser boba não, _ neste momento começou a exaltar-se, muito nervosa com aquela simples situação. _ deixa esses isopor jogado aqui, vem um cachorro e rasga esse trem de tudo em quanto é jeito, faz uma desordem, uma sujeira aqui! 

_ Mas é ela quem tinha que fazer isso, né não? 

_ Pois é Sueli, só que num faz. A CACHORRA, SAFADA, A SEM VERGONHA, NUM FAZ NÃO. A VAGABUNDA ACHA QUE OS OUTRO É OBRIGADO A CATAR O LIXO DELA, UAI. AÍ, TEM QUE CATAR!

Estava tentando amarrar o saco de lixo em postura de verdadeira batalhadora, como um exército encerrando uma grande luta. Porque a vida era difícil! Vivia-se, criava-se filhos e até mesmo netos, trabalhava-se cansativamente, para vir uma nova vizinha e encher-lhe o morrinho em frente a casa de quilos de isopores mortais! Cadê os revolucionários para atinarem contra este ataque aos direitos humanos, ao respeito ao próximo? Aquilo era motivo de desencadear uma terceira Grande Guerra! 

Minha mãe pareceu querer perder o tom risonho, entendendo a seriedade da situação. Foi minha vez de divertir-me, ao ver justo ela, que era tão nervosa (do tipo de mãe que estressa se você não coloca água no filtro), falar em tom contido, respeitoso e preocupado: 

_ Ô mãe, pelo amor de Deus, a senhora num pode ficar gritando ofensas para vizinha desse jeito no meio da rua, não. Isso dá processo, dá até cadeia! 

_ Aaaah Sueli, tem dó! Cê acha que alguém vai querer me prender por um motivo desses?! Uma velha de mais de 70 anos! Eu num vô presa, não. 

É, meus caros. Consolem-se. É assim que funciona, sendo necessária grande paciência para aguentar, pois eles aguentaram segurar as pontas amargas da vida por bastante tempo! Cuide-se, vizinha. Ela é velha. Apenas uma dica: se eu fosse você, não mexeria.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Não é que seja assim tão precioso, é só que habituei-me a tê-lo para mim.

"I need a heartbeat, a heartbeat"

Coração chato, esse meu.
Fica aqui a contorcer-se, apertar-se. Bater e se bater.
Querendo quem e o quê não mais lhe convém,
fazendo da minha vontade sua refém.

Virando um vivo e pulsante pedaço de dor aqui dentro.
Morrendo, revivendo, morrendo, revivendo.

Começa a esquecer e a lembrar-se de seu ritmo,
começa a aquecer e esquecê-lo novamente,
num frenesi de batidas descompassadas.
Uma palavra doce aos ouvidos, singelo olhar,
já se fazem suficientes para desencaminhá-lo.

Este meu músculo sentimental vai aos poucos, 
levando sua demência a todo o meu corpo, entranhando em minh'alma.
Confundindo-me a razão.

Para superá-lo, basta aprender a enganá-lo e convencer.
Como? 
Mentindo para si, para quem o faz doer.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sociedade rima com falsidade que rima com superficialidade.

Ele não atravessava na faixa, esquecia de lavar as mãos.
bebia sua cerveja gelada, gostava da contramão.
sorria para muitas pessoas, em sua fé, tinha convicção.

Mas a sociedade julgou,
um bom coração.
E se a sociedade falou,
não há contradição.
Eles gostavam mais,
era do pacato do seu irmão.

O irmão era o engomadinho,
de camisa social e sapatos.
mais esperto que o outro,
sociedade não via seus atos.
fingia uma fé que não tinha, amava sem coração.

Mas a sociedade não julgou
o podre coração.
Ele fingiu,
 a sociedade se convenceu e assentiu.
porque eles  gostam mais,
é do falso bom rapaz.

O bicho criança.



Ao nascer atravessa-se um período de não entendimento. Entretanto no momento posterior, dos dois aos cinco anos de idade em média, a criança atinge seu momento de maior intelecto e capacidade mental. Os sentidos estão intactos, vibrantes e genialmente curiosos, numa ânsia de aprendizado e conhecimento sincero, sem serem predestinados a objetivos e metas além do próprio saber. Desta forma, ambos se fazem muito mais interessantes e proveitosos. Os olhos arregalam-se por tudo, como instrumentos a criança usa “O que é isso?” “Por quê?”, e também as próprias mãos para observar e testar tudo. É sensível para detectar a pequenez importante e seus sentimentos são simples e claros, encontrando sempre as soluções acertadas: comida, abraços, banheiro, desenho, a mãe. Não foi ainda corrompida pela as nossas más criações, não conhece a mentira. A sinceridade se transborda nas palavras, nos gestos, nos sentimentos. Diz o que pensa e pronto, não conhece a ética, a nossa necessidade de falsidade. Consegue encontrar a felicidade verdadeira justamente pela sensibilidade para encontra-la nas coisas reais e pequenas. 

Dos cinco aos doze anos, a busca pelo conhecimento das coisas vai progressivamente perdendo lugar para a busca das distrações: depois de aprender o “básico”, de entender as coisas “necessárias”, quer desfrutar das mesmas para sua diversão. De forma progressiva perde a curiosidade pelo importante. Aos poucos, sua felicidade se torna mais complexa. Se aos seis distraía-se com uma bolinha de plástico, aos sete quer uma de futebol. Vai começando a desejar carrinhos, arminhas, bonecas melhores... Aos oito, a menina sabe diferenciar uma Barbie falsificada de uma verdadeira, e quer a verdadeira porque a amiguinha a tem. Cansa-se da mesma aos nove, querendo agora além da Polly, seu parque, suas roupas, seus acessórios. Começa a perder a sabedoria a partir do momento que, mesmo ainda em sua forma mais simplória, começa a conhecer e utilizar nossas mazelas: mentiras, ambições, ofensas, egoísmo. Ainda sim, se divertir faz-se objetivo maior. 

O bicho criança atravessa sua fase mais birrenta dos doze aos dezoito: quer, e quer, e quer. Sem saber ao certo o quê e porquê, afinal aquela perda progressiva da clareza e da profundidade continua a mil. Nesta época a superficialidade das coisas atinge o grau máximo na vida deste animal, devido aos sentimentos confusos que nunca definem o que estão pedindo: viram roupas, sapatos, relacionamentos desesperados, necessidade de atenção excessiva. Aqui, tanto fêmeas quanto machos, não sabem o que fazem e não costumam pensar sobre isso. Só fazem. Só querem, só exigem, só precisam. A sua rebeldia desgovernada se transmite em comportamento, conversas, relacionamentos. Tudo para mostrar que é dono de si, para se auto afirmar. Por não saber o que fazer, age por instinto, já atiçado pelas mudanças hormonais e físicas enfrentadas na fase. Não há felicidade, sim alegria eufórica em ápices. 

Dos dezoito aos vinte e cinco em média (todos as faixas etárias são estimativas, essa porém é a que apresenta maior variação, alguns costumam ficar mais tempo na fase birrenta.), a criança toma maior conhecimento do sistema, engole todo o trambolho imposto, e entende que há um modo de se comportar,  algo a se fazer para ser feliz. Define então seu objetivo de vida: estudar para ser alguém, ter casa, carro, viagem. Escolhe uma faculdade, de preferência uma que renderá melhores salários no futuro, e às vezes, algo que tenha afinidade. Aprende a quando rir, quando mentir, a roupa adequada a cada ambiente. Começa a trabalhar e entrar nos eixos. A necessidade de alguém agora já não é mais tanto a vontade de ser orbitado e carência, e sim, ter a companhia de alguém para não estar só, pois a solidão é um dos maiores medos do bicho criança. É a fase na qual o bicho aprende a se domar e comportar, apesar da necessidade de fugir para a loucura nos fins de semana: farras da adolescência persistem, mas agora a criança está a construir o seu futuro. Aprendendo a andar na linha, equilibra diversão com responsabilidades. Nesta fase, muitos idealismos são perdidos para aderir-se ao idealismo comum ao entendê-lo por felicidade. 

Dos vinte e cinco aos trinta e cinco em média, a criança vai obedecendo, calando-se para chefes, aprendendo que algumas coisas precisam ser realmente engolidas. Mesmo amargando a alma, continua a lutar com compostura. Mesmo sem entender direito seus sentimentos e os dos outros, formula as concepções de certo e errado, e aprende a se defender das maldades do mundo e das pessoas. Se necessário gritará, brigará, esquecerá. Vai saber vingar-se, afinal, não é mais boba. É esperta. Fará tudo para ganhar. Ganhar seus objetivos, suas lutas, seu amor, seus sonhos (mesmo que vagos, distorcidos ou manipulados). Agora a criança se comporta de forma mais completa, mas luta para alcançar uma felicidade que mais parece um borrão, do que algum desenho nítido no fim do túnel. Carrega em si a ilusão triunfante de finalmente ter amadurecido.

Dos trinta e cinco aos sessenta, mais uma vez progressivamente, ela vai se consolando. Tentando; uma vitória aqui e uma perda ali, uma vontade que passa por parecer inviável demais. Trabalha, descansa, se diverte. Às vezes se desentende com os outros, enfrenta alguns sustos. Vai tirando de tudo lições. Os anseios, a sede pela luta, vai se tornando indiferente, inexistente. A criança fica entediada, com a sensação de já ter visto tudo e de que não irá conseguir mais nada, que a vida era aquilo mesmo. As mesmas sensações de alegria e tristeza constantes, algumas insatisfações nunca mutáveis. Costuma buscar alguns momentos bons que não vem com a mesma intensidade de antes para distrair a mente de todo tédio e apatia. 

Dos sessenta ao fim da vida, nota-se a tendência rabugenta da criança que agora é amargurada por não ver mais nada de novo, por nada ter para fazer ou se distrair. Reclama da coluna (o corpo aos poucos se degrada), da dor nas pernas, da comida, da visão ruim. Valoriza todas as fases anteriores de forma sofrida, ansiando novamente suas maravilhas. Apesar de estar a sofrer, teme a morte, pois representa o desconhecido. O tédio somado a falta do que fazer devido ao corpo inválido torna-se finalmente, uma nostalgia ruim. Agarra-se a coisas tolas, picuinhas bestiais. Contrária à primeira fase, valoriza as coisas pequenas inúteis e sem valor. 



P.S: Todo ser humano é um dia criança, mas nem todo permanece nesta fase o resto da vida.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Cansaço, sem estardalhaço.



 Minh’alma agoniza.
Em cada nota desse violão,
em cada grito.
Por cada coração
que me foi perdido.
Também pelo meu,
despedaçado.
Nesses pedaços quentes, pulsantes, doloridos.
Cansados. Vivos e inflamados.

É o pensar que agoniza,
e o não pensar é impensável.

Eu quero mesmo é esquecer o discurso inflamado,
os sentimentos entrelaçados.
Deitar numa cama e deixar meu coração repousar.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Viver leve, lento e bom.

Quero moça de quermesse que quer missa pra casar.

Sou uma pessoa que gosta de ruas estreitas. De vizinhos nas esquinas, senhoras em lãs, meias e chinelos, cabelos presos por grampos. Falando sobre a Luisa que vai ter neném, comentando sobre o tempo, lembrando-se de “causos” antigos. Barulho de crianças brincando na rua, a mãe chamando para dentro, já que é dia de semana e é necessário fazer a lição de casa. A menininha se senta no passeio e brinca com o cachorro da vizinha, enquanto a mãe conversa com seus vizinhos. “Levanta, Laura, cê já tá gripada, ainda senta nesse chão gelado?” 

Gosto das casas pequenas e coloridas, coladas umas nas outras, com entradinhas estreitas e muitos vasinhos de plantas, algumas flores. A portinha baixa, grades de liberdade. O vô na cadeira de balanço entre as plantas, só observando. Esperando alguém disposto a um bom papo. A vó faz tricô, escuta o padre no rádio e cuida do netinho pequeno, dá os doces da lata que a mãe não deixa dar antes das refeições. 

Cumprindo profecias adeliasísticas, o povo chupa laranja nas portas aos domingos de sol, no paraíso da sombra de uma árvore enquanto o rapaz anda de bicicleta. A missa a noite é de lei, tempo de Quermesse é festa, mexida, trabalho, alegria. 

Moça grávida aos quinze é escândalo, dias e mais dias de assuntos para o pessoal que nas portas conversam a noite, acompanhantes espantados e assíduos do caso. Não é engolido com aquele conformismo irônico do que já se tornou comum nesse nosso mundo. É escândalo, é raridade. “Bem que desde sempre a Clarinha do Manuel, já era a mais espevitada mesmo, muito pá frente. Falava com a Lúcia: num deixa Tereza andar muito com essa menina não”, o Juca comenta de braços cruzados. O rapazinho treme de medo, arrependido. Trabalha e vai ver a moça todos os dias. Estão arrumando o casório que talvez nem fosse para ser, mas que agora precisava. 

É o namoro de sofá, alegria juvenil é cinema com a mocinha. Conversas nas festas de igreja, eventos da escola. Sorriso, braços e mãos, satisfazem. Um pouco de distância, porém satisfatória. Não existe nossa atual ânsia, que nunca é satisfatória. Sem gritos, choros, alardes, grandes decepções. É coração disparado, pernas tremendo e alegria quando pai diz que aprova. E tudo vira sonho. 

Bom demais, frio sob cobertas em feriado. Parente pouco visto visita, e tem café, bolo, broa, biscoito e bolacha, tudo da melhor qualidade. A família junta dinheiro o ano inteiro, e no final vai para praia. Traz foto e lembrancinha, e um tanto de caso para ser contado na esquina. Alegria maior para ser contada, é só filha entrando em faculdade na cidade grande para ter emprego bom, filho casando com moça que é boa pessoa. 

E assim, sem fogos, tecnologia de ponta, insônia de preocupação, religião só por desespero, e sim desejo e necessidade sincera. Sem veneno escorrendo mortalmente das línguas, ambições delirantes. Sem ciclos viciosos, pressa de viver, comer, chegar, alcançar. Sem tudo isso, a vida vai. Mais bonita na hora que o céu é multicor ao pôr-do-sol. 

Eu gosto, podem me acreditar doida, mas eu gosto. Porque gotas de felicidade vêm com emoção muito maior que enxurradas da mesma. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Karla e os bonecos de neve.



"Todo dia o dia não quer, raiar o sol do dia"

Karla mudou-se para o Canadá aos quinze com seus pais. Problema nenhum teve com a mudança de idioma, sua mãe colocou-a na aula de inglês, espanhol, francês, natação e balé aos seis anos de idade. De violão aos onze, quando ela se cansou do espanhol, de pintura aos treze, quando se negou a continuar no balé. Martha queria uma filha qualificada, dar para a filha tudo que não pudera ter quando nova. Era isso que dizia de forma sentida à filha cada vez que Karla queria sair de algo, pois de todas essas coisas as únicas que havia realmente desejado fazer eram a natação e o violão. Mas isso não se enquadra em nossa história. 

O caso é que Martha e Carlo, ambos médicos qualificadíssimos, haviam recebido irrecusáveis propostas de emprego em Montreal. Carlo trabalharia no campo de pesquisa de uma faculdade renomada, Martha se juntaria a uma famosíssima clínica de estética como uma das principais cirurgiãs plásticas. Ganhariam uma fábula em dinheiro. Não que já não a ganhassem em São Paulo, mas dinheiro quanto mais melhor, não é mesmo? 

Karla não quis falar com seus pais sobre as lágrimas contidas ao abraçar cada amigo do Brasil antes de partir, nem sobre aquele peso chato no peito que sentia agora sentada em seu esplêndido quarto enquanto observava o mundo envolto em neve lá fora. Eles pareciam felizes demais com seus novos empregos, planejando passeios a lugares de paisagens congeladas nos fins de semana e comentando sobre seus inteligentíssimos novos colegas de trabalho. Ela não entendia porque não se contagiava com aquela alegria e ficava sentindo aquele peso esquisito no peito, a garganta apertar para conter lágrimas. 

Quis falar com Clarisse, Mariana, ou Lucas quando eles ligaram para si. Mas ficou sem jeito, pois as perguntas deles viam embargadas de alegria através do telefone e eram sempre do tipo “Como é aí?” “Vocês já foram esquiar?” “E a escola? O pessoal de lá é legal, ou é chato e metido?” “Já foi as compras?”. Ou senão, Clarisse ligava para contar de como Pablo estava lindo na educação física, que tinha beijado o Matheus e a vadia da Lúcia tinha entrado para comissão de festas do colégio. Ela ouvia as fofocas escolares enquanto Clarisse tropeçava nas palavras, afobada para contar tudo para a amiga, pensando fazer um bem imenso em mantê-la a par de tudo que acontecia em sua velha vida. No entanto, o peso no peito aumentava, e lágrimas silenciosas lhe corriam pelo rosto enquanto conversava com Clarisse. Mas ela não percebia ou não se importava com o tom choroso nas respostas curtas de Karla. 

Assim, acordava todos os dias, tomava café com os pais, trocando algumas palavras como “me passa a geleia”, vendo a mãe lhe sorrir em resposta. O pai perguntava da escola, mas não se ela estava gostando, mas sim sobre a qualidade do ensino. Ela dizia ser muito melhor do que o da antiga escola. Então ele fazia alguns comentários irrelevantes sobre as escolas nos países desenvolvidos e o fato de a excelente educação tê-los conduzido a este posto de potências mundiais, levantava, beijava a testa da filha e saía já atrasado para o trabalho. Ia para a escola, estudava, lia, sorria para quem conversava consigo. Mas aquele frio constante parecia se transmitir para as pessoas. Não conseguia achar que alguém estava realmente interessado na sua pessoa, pois as perguntas eram sobre o Brasil. Às vezes pediam para ela falar algo em português, como se ela fosse um espetáculo de circo, não aguentava mais frases do tipo “Look, she’s a brazilian girl!” pelos corredores. 

Tomou por hábito ficar na escola depois da aula para estudar, pois era realmente exigente o ensino canadense. Nos fins de semana, ia à deslumbrantes restaurantes, patinava, ia no shopping com a mãe. Carlo na maioria das vezes não acompanhava a família, pois quando não planejava aulas ou pesquisava sobre algo para o trabalho, preferia descansar. Começou a frequentar a casa de uma garota legal que havia conhecido no colégio as sextas-feiras. Seu nome era Rebecka, mas a chamava de Beck. Beck tocava violão também, então conversavam sobre música. Infelizmente, Karla não conseguia contar para Beck o que sentia. Achava que a nova amiga poderia se sentir ofendida em saber que ela estava infeliz mesmo tendo a sua amizade. Além do mais, não tinham essa intimidade toda. 

Com muitas tarefas durante o dia, até conseguia se distrair. Fazia os deveres, estudava. Voltava para casa, via TV, ia para seu computador. Cansada, tomava seu banho, colocava o pijama já sentindo o frio cortante no ar. Depois de tudo arrumado para o dia seguinte, ia se deitar. Entretanto, ao sentar-se na cama e a através da janela vislumbrar o céu escuro, ouvindo apenas o barulho da neve caindo, tudo vinha novamente à tona. E o peso no peito se tornava tão grande que ela sentia dificuldade em respirar. O choro vinha com um desespero muito intenso, de familiar de quem está com doença em estágio terminal. 

Mais desesperador que estar naquela situação horrível, era ver que ninguém estava realmente interessado em lhe ouvir. Por mais que seus olhos expressassem toda aquela tristeza, ninguém olhava realmente neles. Se olhasse, era para comentar a cor bonita, azul-verde ou verde-azul. 

Doía descobrir que tinha construído para si relações tão superficiais com aqueles que se importava, aonde os seus não possuíam sensibilidade suficiente para percebê-la mal. Sentiu sem ter certeza, que ninguém se importava de verdade consigo. Acabou por perceber egoísmo nas pessoas que amava, porque começou a pensar que em situações anteriores já havia as apoiado e se importado de verdade com elas. 

Karla consolara por semanas seguidas Clarisse, quando Rodrigo terminou com ela. Ia à casa de Lucas todos os dias quando ele perdeu seu pai. Tentava fazer a mãe sorrir quando se estressava no serviço. E milhares de outras coisas, até que enfim resolveu parar de lembrar, porque pensar faziam mais sentimentos ruins nascerem. 

E foi vivendo nessa agonia que em um dia aleatório, resolveu ir pela primeira vez ao jardim da elegante mansão. Nunca havia ido porque ele se encontrava constantemente congelado e coberto por neve. Parecendo um grande colchão empacotado por usar tantas roupas de frio, saiu andando pelo jardim mais sem cores que já vira em sua vida. 

Foi então que, meio sem ver, porque o fazia enquanto pensava na sua vida e em tudo que estava sentindo, começou a mexer na neve, montando bonecos. Fez três, lembrando-se de com algumas folhas, sementes, bolinhas de uma árvore ali perto, presentear-lhes com rostinhos. Acabara de montar três bonecos, pequenos. De modo que se resolvesse sentar, poderiam bater um papo de igual para igual em questão de altura. 

_ E aí. _ e foi o que ela disse, olhando bem nos olhinhos redondos de bolinhas que dão em árvores do que estava no meio entre os três. Ele não tinha boca (não havia nada por perto que parecesse dar uma boa boca de boneco de neve), o que lhe imprimia um ar muito sério. Seu nariz ela uma bolota grande, uma coisa que também dava em alguma árvore dali. Mas quando Karla viu no chão um galhinho divertido cheio de pontas, soube que aquele seria um nariz muito melhor. 

Fincou o galho no lugar da bolota, analisou o boneco. Foi inevitável rir. Ficara muito engraçado. 

_ Rir é tão bom. _ disse, vendo-se que já quase se esquecia do som da própria risada. Resolveu pegar outro galho, para desenhar na própria neve com ele uma boquinha rindo no boneco de nariz engraçado. Era estranha tamanha simpatia que aquele boneco lhe despertara. Acabou por desenhar boquinhas na própria neve nos outros dois também: no da esquerda, uma assustada (:O), no da direita, uma meio debochada (:}). Até havia pensado em fazer uma triste, mas tristeza bastava a sua. 

_ Você é a coisa mais divertida que já fiz aqui, sabia? _ ela disse para o de nariz engraçado, ele era realmente o de sua preferência. 

_ Mas não fiquem com ciúmes, eu gostei de vocês também. _ concluiu sorrindo aos outros dois. 

E foi desta forma que a pobre-rica menina Karla, começou a aliviar sua angústia: todos os dias em sua hora vaga, os refazia (a neve constante caindo os estragava), e ficava às vezes, até horas conversando com seus bonecos de neve. Para ser realista, não era algo que lhe resolvia os problemas, mas dizer o que acontecia em seu dia, o que estava sentido, as questões que haviam em si, causava um alívio imenso. Era como se aquele maldito peso no peito não se aliviasse, mas se tornasse possível de ser carregado. A sensação ruim continuava, mas o desespero de guarda-la para si melhorava em um simples contar a um boneco de neve. 



Um dia, Karla passou numa espécie de mercado que havia perto da sua escola. Era uma espécie de shopping, porém mais popular, como uma grande praça fechada cheia de lojinhas e restaurantes. Causava uma sensação de conforto por estar sempre cheio de pessoas, alguns vendedores ambulantes que ficavam gritando e andando pelo local, pessoas fazendo uma pequena pausa para o lanche, comerciantes sorrindo para conseguir clientes. Todo aquele barulho, confusão e conversas, imprimiam grande humanidade ao local 

Por mais que lhe agradasse o lugar, seu pai jamais poderia sonhar que estava num lugar popular como aquele. Por isso, ia em algumas daquelas vezes que dizia ficar estudando na escola. 

Acabara de sair de uma loja de CD’s,com muita coisa nova para ouvir, quando ali mesmo na porta da lojinha, a sacola estourou e voaram CD’s para todos os lados. 

_Ai, caralho. _ xingou com raiva, inclinando-se para começar a juntar suas compras. 

_ Não devia xingar esses nomes feios, moça, é delicada demais para isso. Há muitos brasileiros aqui que compreenderiam e se assustariam em vê-los na boca de uma moça tão bonita. 

Ainda agachada, parou de juntar CD’s e olhou para frente. Um garoto que parecia ter mais ou menos a sua idade, a estava ajudando a juntar as coisas. Ele notou o olhar sobre ele e levantou a cabeça para olhá-la também. 

_ Obrigada. _ foi a única coisa que Karla conseguiu dizer, porque ele estava sorrindo para ela e seu sorriso era lindo. Fez o seu coração esquentar-se no peito, porque como aquele lugar, era um sorriso aconchegante. Acolhedor, sincero. 

Como se ele estivesse feliz em poder ajudá-la, como se se importasse. Era uma sensação boa, e fez com que ela quisesse parar o momento. Mas o mundo não parou, ele não para nunca; e o dono da loja chegou à porta pedindo que eles juntassem tudo logo porque estava impedindo a passagem de seus clientes, fazendo com que aqueles longos segundos nos quais eles se encaravam e ele a sorria, tivesse que acabar. 

_ Bom momento para xingar um palavrão em português que ninguém entenderia, não é? 

Os dois riram, juntando as coisas rapidamente. 

_ Martin. Prazer em conhecê-la, senhorita da boca suja. 

Ela riu. 

_ Não é justo, não imaginava que teria algum brasileiro por perto pra entender, ok? Meu nome é Karla. 

Resolveram tomar um café juntos. Em circunstâncias anteriores não lancharia com um estranho, mas aquele estranho lhe era estranhamente familiar. Como se um brasileiro na imensidão da frieza canadense, fosse como estar um pouco em casa. 

E o assunto fluiu suavemente, despretensioso e alegre, como se eles se conhecessem há alguns anos, como velhos amigos que se reencontraram. O café pedido esfriou, a calda do bolo secou, pois o assunto não queria parar, estava agradável demais. 

Mas o que fez o coração de Karla desconcertar no peito enquanto conversavam, foi uma simples frase de Martin. Ela estava falando muito, contando sobre sua vida no Brasil, enquanto ele a olhava, muito atento. Ficando constrangida sob tão intenso olhar, perguntou: 

_ O que foi? 

Ele pareceu despertar de um transe, ao ouvir esta frase. Apoiou os cotovelos na mesa, cruzou as mãos, apoiou o rosto sobre. Falou, analiticamente. 

_ Nada em especial. Estou só pensando, como olhos tão lindos podem parecer ao mesmo tempo tão tristes. 

Era tudo em especial. Quase poderia afirmar que era tudo que desejava ouvir, precisava ouvir. Aí, ela sentiu alguma coisa, forte e boa. Um coração disparado, porém não por desespero. Por algo bom. Ainda difícil de definir, mas inegavelmente bom. 

Karla foi para casa sorrindo aquele dia, degustando cada frase do assunto. E mesmo estando tarde e frio, foi até o jardim contar tudo para os bonecos. Seus amigos não poderiam esperar para ouvir aquela novidade, mesmo que aquilo a trouxesse uma pneumonia. Só entrou porque a empregada Sandra a gritou, estressadíssima. Ouviu aborrecimento dela e também dos pais, porém sem dar a mínima para isso. Havia combinado de se encontrar com Martin no dia seguinte. 

Naquele dia, ela lhe passou o telefone. Começaram a se encontrar todos os dias no mesmo mercado e à medida que iam se encontrando, Montreal ia se tornando cada vez mais linda. O branco da neve já não era tão incômodo, era quase bonito. As comidas dos restaurantes refinados nos fins de semana com a mãe pareciam mais saborosas e havia desejo de se comprar roupas, para ficar bonita para Martin. 

Karla foi até os bonecos e só soube sorrir o dia que Martin a beijou. Tentou explicar, colocar em palavras toda aquela euforia, o desespero bom. Mas parecia impossível. Essa foi uma das últimas vezes que foi até eles, afinal de contas não havia mais sentido naquilo. Contava tudo para ele agora. 

Mas não soube contar sobre ele a ninguém, como se o fato de alguém saber pudesse tomar um pouquinho daquela felicidade que ela desejava por completo. 

Quando Clarisse ligava, assim como antes não havia percebido o tom choroso, não percebia aquela voz de quem falava sorrindo. Porque era assim que ela andava agora, sorrindo. Saía nas ruas apinhadas de canadenses empacotados em milhares de roupas de frio e correndo contra o tempo, sorrindo, e rindo de todas aquelas caras fechadas. Porque o Canadá era lindo, a vida era linda e o mundo era perfeito. Nunca fora muito religiosa, mas agora agradecia a Deus pela sua imensa perfeição: permitira aquele momento ruim de mudança para o Canadá, aquela tristeza generalizada, para que pudesse encontra-lo. 

Até que um dia, Martin não foi ao mercado depois da aula. Sem mensagens, sem ligações. 

Então ela ligou. Celular fora de área. 

E aquela noite foi a mais agoniante de sua existência. Não conseguiu dormir, apenas cochilar quando já estava exausta. Neste breve cochilo, teve sonhos confusos envolvendo Martin. 

Na escola, não ouvira nem uma só palavra do que os professores diziam. Estava tão estranha, que muitas pessoas além de Beck notaram sua estranheza. Obviamente, não se explicou a ninguém. Em circunstâncias normais já não o faria, vivendo aquela agonia, muito menos. 

Foi para o mercado com aquela esperança quase doentia. Ficou três horas sentada, quase sem piscar, o celular suado em sua mão de tanto ligar para ele. Fora de área. 

Pesadelos à noite, choro entalado, olhos vidrados e cheios de olheiras. Esperança doentia por uma semana toda vez que ia ao mercado. 

E finalmente a aceitação, que não poderia ser bem uma aceitação, pois, como se aceita um grande amor desaparecido no mundo? Um amor sem respostas, uma cura que virara doença? Um abandono injustificado? Além do vazio, as dúvidas eram enlouquecedoras. Ele voltara para o Brasil e simplesmente esquecera sua existência? E se tivesse morrido? Sido sequestrado? Por que essa sensação de ele saber muito sobre ela, e ela quase nada sobre ele? Por que ela não conseguia chorar? Não havia lágrimas. 

Até o dia que resolveu ir até os bonecos de neve novamente, porque não aguentava aquela sensação de coisas entaladas em si, e contar para alguém agora soava ridículo e inviável. Os bonecos eram só montes de neve agora, depois de tanto tempo sem refazê-los. Sumiram boquinhas, olhinhos, corpinho... Só neve toscamente acumulada. Pensou em refazê-los, mas mudou de ideia. Eles se pareciam com ela, agora. Sem expressão, depois de tanto decepção, sofrimento, angústia. 

Ela conseguiu chorar muito, quase sentindo a água de o corpo esgotar em meio a tanto choro. Mas ela deixou arder bastante ali, enquanto observava seus bonecos soterrados por tanta neve. Aquela seria a última vez que se daria ao luxo de ficar sentindo, pensando, remoendo. 

Depois dali, Karla se tornou um boneco de neve.