domingo, 30 de agosto de 2015

Eles




Em algum momento a gente desaba.
Seja por ele, seja por ela.
Eu queria ser dessas pessoas, que vive mil paixões à flor da pele. Sair debaixo de chuva com a cara marcada de choro para implorar que ele fique - na maioria das vezes só imploro que não deixe sequelas quando for.  Dizer um eu te amo sem engasgar. Escrever esse tipo de coisa sem achar que é um tanto de baboseira. Eu não sei da onde veio tanto estrago, se apaixonar pra mim é coisa que ficou nos meus quatorze anos.

Talvez eu só esteja madura demais (quase podre) e esse tipo de sentimento seja demasiado infantil pra morar em mim. Quando alguém me faz uma cócega que seja, meu primeiro impulso é correr. São 01:01 da madrugada, estamos em 2015, e eu ainda não sei lidar com o panda de pelúcia sobre a minha mesa. Se envolver com alguém é assustador. Um couro grosso enrola-se sobre mim, e não sei se tenho pulso suficiente para romper essa casca, aqui dentro tá quente. Quero ficar.

"Que curso cê faz, moça?", tenho tanta preguiça de responder essa pergunta, acho tão desgastante sair assim, beijando as pessoas. Se envolver parece uma corda na qual nós lentamente nos enrolamos. À primeira vista todo mundo parece tão nada, e é tão difícil caminhar até a segunda. Alguém que me mande bom-dia no cinza de uma segunda. Que seja um novo universo a se explorar. O ser humano tem estado superficial porque estamos perdendo nossa ternura. Ninguém repara no instante em que uma mão brinca com os dedos da outra. Ou quando os olhos delicadamente se fecham e um outro alguém deposita um beijo sobre eles.

Somos fracos demais, deixamos tudo solto, tudo prestes a solver. E quando vamos, deixamos prevalecer o pus das feridas, com medo que a cicatrização apague as marcas e tudo nunca mais venha a ser novamente. Falta a coragem de se lançar em alguém, em algo, esquecendo o receio dos tombos.

O amor se esconde entre os trapos da vida.


Princess of China




Às vezes a vida se perde em tantos entremeios. Hoje assisti três filmes, me deram chocolate, ouvi mil vezes Princess of China e lavei minha roupa suja - banalidades de um dia qualquer. Ainda vou rezar um terço, mas agora eu quero escrever. Às vezes parece que nós estamos desabando, que estar aqui é um constante estado de ruína. Os professores despejam conteúdo, as salas de quadros grandes e longos, lembrando o tempo inteiro o quanto é difícil ser bom o suficiente. De repente, estamos todos doentes: as gargantas inflamam, tossimos, febre, antialérgico e antigripal... virei refém de um estúpido remédio de pingar no nariz. Com a mãe ao telefone, ligamos nem que seja para lamentar: "Que cê tá sentindo, filhotinha?" Nada, mãe, só um corpo ruim. Também há em mim uma espécie de nódulo que se forma aqui, sob a garganta, nó emaranhado de sentimentos. Mas mãe, você não pode  compreender isso.

É um estranhamento de viver nessa indefinição. De parecer ter a vida nas mãos, morando longe, bebendo e agindo como quero, mas totalmente refém dessa mesma vida.

Quer dizer, que tirania é essa, gente? De repente a gente tem que comprar remédio, compostos que nem sabemos o nome. Fazer um esforço absurdo para comer bem. As viroses que nos atacam vem com o excesso de álcool e de madrugada, a falta de tecido suficiente para cobrir o corpo nesses momentos. Quando eu subo esse morro enorme, cheia de sacola de supermercado, o sol me derrete, a vida escorrendo pelos poros... aquilo é o Calvário. A tortura que cada um de nós escolheu passar, pelo privilégio das delícias de estudar fora e por um tal de futuro que nos reserva sei-lá-o-quê. Não somos bons o suficiente, é fato. Nem maduros, nem completos. Já perdi a conta dos roxos nos meus joelhos, não lembro um terço de como eles aconteceram. Os sapatos atolados em lama no quintal apontam os lugares espalhafatosos, festas vertiginosas em que estive, em que sempre estamos.

A menina grita, embriagada, no meio do morro, que quer dar. A cidadezinha de pedras e ruas estreitas, das infindáveis novenas à todos os santos se assombra. As gordas mães e donas de casa, moradoras das janelas se escandalizam. São João del Rei não sabe conviver com esse fato: a vontade de dar. A gente não sabe se reprimir. Os meninos brincam, mas é poesia sim: "Que espécie de amor é esse, que o meu amor continua amando todo mundo?". Eu só acho que a gente desaprendeu a amar. Aceitamos o burocrático peso de estudar pelo futuro, mas não sabemos lidar com o mais simplório sentimento humano. Na nossa babaquice absoluta, conseguimos conversar por horas sem falar absolutamente nada, até porque, dependendo da quantidade de vodcka, a gente não lembra no dia seguinte. Nossas palavras estão ao vento, e nos encontramos tanto, que até parece que a gente não se sente sozinho.

A gente se sente sozinho o tempo todo.
"Once upon a time somebody ran, somebody ran away saying 'fast as I can'"




segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Cachecol


fomos sempre cheios
de entremeios
no cachecol
ficou o cheiro.

Universitários, otários

Não podem esperar que sejamos responsáveis,
a gente nem sabe descascar laranja.
comprar verduras.
Abobrinha verde lustrosa,
ou a amarelada?

desdobráveis.
descartáveis.
instáveis.

amor
é palavra que a gente corre
enquanto segura o copo
que não escorre

a gente
tem medo
de se derramar
uns nos outros

quando adoece
liga pra mãe

acha que miojo
é o alimento do mundo
e álcool
o líquido

líquido

escorremos pela vida.

domingo, 9 de agosto de 2015

São só domingos.


Duas meninas moças. Shorts jeans com pernas muito expostas, blusinha qualquer. Sentadas no morrinho que fazem nas portas da garagem. Assunteiam os melodramas que protagonizam o ensino médio.

Dois rapazes. Um para dentro de casa, o braço se encosta no lado da porta, um suvaco -essa palavra de povo e de alma- aberto sobre o mundo, fala com o amigo, que faz que vai embora. Suspeito que conversam sobre carros. Sem-camisa, boné, bermuda, chinelos antigos. Naquela rua inclinada margeada por lote vago, onde sobe um manchadinho cão.

Sinhôzinho e cigarro de palha entendem-se no banquinho de fora da casa. Pra trás ergue-se um terreiro, onde integram-se: galinhas, terra, minhocas e chão. Um fulano-cumpadre passa, para, cumprimenta e conversa.  

As mercearias abrem de maneira mais meiga aos domingos. Durante a semana parecem torturadas pela sina dura daqueles que são trabalhadores e andam com passos rápidos, compram pão de forma e queijo para não ter que visitar a padaria em busca de alimento todos os dias. Funcionam mansinhas, com suas prateleiras estreitas e seus produtos nem sempre com preço. "Valdemar, essa azeitona aqui é quanto?"

No meio de nuvens que se esforçam para se formar, observei pender da janela as flores da minha madrinha e trouxe do café da igreja, pastéis fritos para dona Maria. Pio, latido, como chama os barulhos que os pássaros fazem? Do pé de tomatinhos minha vó não come, os pombos podem cagar nele. Agora imaginem aquela doninha pequena, parecendo um patinho, de olhinhos azuis e brinco de pedrinha verde falando cagar: a vida tem raríssimos momentos de graça.

Neste dia em que se come carnes assadas, recortei num papel um coração pro meu pai, dei presente qualquer e comi queijos. Não é atoa que domingo é o dia que Deus quis para si. Amanhã despeço-me desta terra para ir para outra, onde os domingos cheiram a resto de álcool e os sinos ressoam. 



sábado, 8 de agosto de 2015

Às vezes tenho vontade de prazeres ancestrais, como descascar laranjas. Ver a cor berrante se enrolar enquanto descasco, o cheiro ácido se espalhar pelo ar. Vó fala cascar. Minha vó disse estes dias: é difícil né filha, cê é cheia de alergia, seu cabelo não brilha. Eu respondi que hoje em dia o mundo corre demais e não temos mais tempo para nos reparar: como mau, não percebo, fico indisposta e meu cabelo opaco.Estou observando meus fios crescerem devagar e não tenho tido coragem para cortá-los. Coragem queria ter era para mandar ir tomar no cu, assim, bem feio mesmo na minha boca de "moça de igreja", esses trogloditas que mexem com a gente na rua, levando as mulheres a levantarem bandeiras que nem deveriam mais ter que existir.

Eu nem sei mais quais estandartes carrego. Culta é que não sou, nunca tive erudição para ler nem Guimarães Rosa, e as pessoas acham que escrevo, quando na verdade repasso divagações.Já quis ser santa, observava Teresa e Chiara e sofria por não me assemelhar à elas. As mãos das irmãs são sempre geladas da água usada no serviço, como em "lavai os pés uns dos outros", a irmã Zilda disse que maior prazer era preparar os quartos quando a gente ia para o retiro. Servil, coberta de hábito, sem vaidade para batom e rímel, eu já quis ser assim. Mas graças à Ele, que quis povo santo e pecador, mando minha mãe tirar uns três dedos da saia. É assim que venho: cheia de receios, ataques, instantes súbitos de desejo e inspiração. Depois desfio rosários, mesmo que viva a desafiar a douradíssima Igreja Católica Apostólica Romana, porque a mãe do céu é que nem mãe da terra, deixa de amar se eu desando não.

 E olha, não creio que meus desandes sejam tão desandatórios assim. Nem quando estive contida, de blusa de retiro e escapulários fui tão plena de mim. Porque minha gente, Deus é tudo! Isso é delícia, é cor, é sabor de comida de mãe. Ele é funk, batida do envolvimento. Ele é folhas caídas, dançadas pelo vento, a cor de cobre dos cabelos da menininha. Ele é a capinha laranja-berro do celular da Cássia,  amiga autêntica demais que faz das pessoas universos, e que cada instante em seu convívio é uma oração. Ela, que parou há um ano de ir na missa. Gente, Deus é eu, pegando gravadores e entrevistando pessoas. Jornalismo é sacerdócio, nada pode ser mais sacro do que ouvir e perceber o outro.

Sobre mim, só sei que faço jornalismo, não gostei de O Homem da Mão Seca da Adélia, preciso de Deus acima de todas as coisas, acho amor instável e não me apaixono nem se fizerem oferenda à Ossanha. Por favor, se alguém souber algo além me conte. Faz tempo que não faço as unhas, não as tenho para arranhar ninguém, minhas cutículas estão grandes. Antes bebia pouco café com muito leite, depois mais café que leite, hoje é café puro mesmo. Consolei-me que nunca serei magra, que meu quadril é pra ir de norte à sul. Meu coração é mapa das estradas de Minas: trechos de sol e cheiro de mato, mas com pedras severas nos entremeios.