quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Um diamante

se eu te falar que eu gamei, ó

O carnaval é uma festa sem cheiros. 
Pelas íngremes ladeiras diamantinenses deslizaram bebidas, juízos, pés cambaleantes, a dignidade de muita gente. É um lugar cheio de história, situado entre pedras. Onde o sol e a festa resolveram parar. Terra quente demais durante as tardes, fria sob a lua, estremeceu todos os meus sentidos. Enquanto a igreja amarela ardia debaixo do sol, um carro passava assoviando, e nós descíamos o morro absurdo, eu pensei que era bonito morar num país que declara: por cinco dias vamos festejar!

Vibrei com tanta cor, corpo, sabor, cheiro e barulho. Porque tudo tem sua hora, e carnaval é hora de esquecer. Há 360 dias para se preocupar com o que vestir, com o que comer, com o que vão pensar de determinado comportamento. E cinco para pegar uma caneca, a roupa mais fresca e cantar música ruim com estranhos. Esse arrocha é pra você que achou que eu tava aqui sofrendo, vai vendo. E eu vi: os casarões históricos refletidos numa infinidade de óculos de sol escondendo olhos já meio fora de órbita. Ouvi: as pedras-sabão vibrando com o batuque de tantos ritmos. Observei a ascensão e a decadência humana. A alegria, a euforia, a dança, seguidas da cabeça entre os pés esparramados na calçada. É uma pena que a grande maioria das pessoas sinta necessidade de chegar a tais estados, mas isso não desmerece a folia boa. Nem o fato de que a Coliseu ganhou uma república para disputar meu coração! República Litraço, o bonde confirmou. Além da mais óbvia constatação: um amor de três dias é infinitamente mais saboroso que um de três anos. 

Aquela cidade reergueu em mim um leque de necessidades saudáveis, meu faminto desejo de equilíbrio nesta vida. Eu quero uma existência em cores fortes: com barulho, gente transitando e ficando, música boa e ruim. Quero copos gelados, e quando tocar então desce, desce, desce menina, eu desço mesmo. Depois eu subo para essas mediocridades diárias, afinal, são elas que contextualizam a diversão. Ah, para expressar bem o que foi meu carnaval, as letras deste texto abobado tinham que dançar. Porque foi isso. Diamantina é a farra boa no meu coração.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Eu, que não me chamo Lola.

Is someone getting the best of you?

Eu chuto os baldes é com as pontas dos dedos. Provoco respingos de água com minhas sãs indecisões. Parece-me que o mundo ao meu redor prende o fôlego esperando o decisivo momento no qual eu viro ou puta ou freira. Eu sinto morar em mim duas metades que de tão incompatíveis se amam, mas que não fecham um todo. Não existo num todo. E se pinto as unhas em tons escuros e deixo crescer, é por genuína crueldade. Há dezenove anos entortei um pouco mais o já descoordenado eixo da terra, tropeçando sem salto, batendo nas paredes da casa pela manhã, brigando com meu peso. Tentando compassar minha arritmia existencial.

Fato é que gosto dos piores rapazes e dos santos mais humildes. Rapazes desgastam-me tanto que fico querendo ir embora de todos ou que algum me apaixone. Sou incompetente demais para ambas as coisas. Eles também. Santos envolvem-me profundamente, nas suas imagens ternas, nas suas histórias bonitas. A luz vermelha dos Sacrários habita em mim. Mas sinto muito frio nos pés. No fim das contas não poderei me cobrir com um hábito, tenho a pele sensível demais a toques. Passo batons escuros por pura preguiça de maquiar, vou-me embora por pura preguiça de sofrer. Não tenho estômago forte o suficiente para o fato de que "te amo" em espanhol é "te quiero". Querer alguém é enlatar o coração, pô-lo em nojento líquido de conserva. Desgasta-me quando me querem muito, desgasta-me quando me querem pouco, não gosto de pessoas pontos-finais. Sou eternamente reticências.

Eu queria ter a fibra das pernas firmes da minha mãe, a praticidade dos seus dedos rústicos. Quando o varal estraga ela o improvisa, se necessário, arranca as cortinas da casa. Tem voz alta para os cânticos de igreja, estressa-se com coisas tolas. Nada disso herdei, o que faço de forma prática é embolar a vida. Embaraçar fios esticados. Comer queijo com goiabada quando tem chocolate. Rezo mil rosários mas não me peçam para escutar música religiosa. Frequento mil conventos mas não me peçam para carregar um bebê dentro de mim. Eu sentia-me monstruosa com minha aversão à gravidez, até que a irmã revelou-me: você é muito maternal, Sarah.

É que cuido com zelo dos meus afetos. Não quero demorar-me mais onde não houver amor. Eu gero vida é com os fogos que desperto, com os cafés que fervo, com a sinceridade das minhas preocupações. Decorei este fato: a parte mais sensível da língua é a ponta. A parte mais sensível de mim são as pessoas. Não vai embora não, sô. Faço um brigadeiro, um doce de coco. Conversa comigo Ana, me conta da vida Cássia. Amei a visita, Jão! Sou fogo, sou ferro, mas também sei ser ternura. Rezo ave-marias para os amigos nas estradas, gosto de observar as faixadas das casas e seus ornamentos. Gradinhas baixas e plantas penduradas nas paredes me agradam. Acho que cedo meu útero só para nascer uma Lola. Tenho necessidades dessas palavras: Lola, cereja, largo, te quiero.

O barroco que me assusta mora em mim, barrocas são minhas curvas. Sou perigosa na finura da minha cintura, na largura do meu quadril, no absurdo da minha fé. Minha religião não conseguiu me domar. Entretanto não há maior vontade em mim do que a de ser boa. Se eu pudesse salvava o mundo todos os dias, não sei mais quantas crianças jogando damas no papelão eu consigo ver sem chorar. Quero chorar todas as pessoas sozinhas existentes. O mundo dói demais pra eu sorrir. É por isso que evoco Francisco de Assis que amava as pessoas, os animais e beijava leprosos. Cristo, quero ser instrumento de tua paz e do teu infinito amor. Mais que fome corporal eu tenho fome de bem.

Por isso permito-me um rabo de cabelo baixo e uma camisa de dizeres religiosos, suporto o cheiro débil, e visito os idosos. Estendo as roupas para minha mãe não ter que subir escadas, intercedo em favor de família e amigos com poucas tendências religiosas. O leve toque dos sinos quando o padre levanta a hóstia é o que rege a vida que há em mim, sou como mosca a rodear essa luz. Eu sei que é só Deus que me completa mas divirto-me com as coisas tangenciais. É por isso que chamo de "meu bem", escolho saias e um nome pra república.

E eu ainda vou desfazer alguns juízos. Tropeçar descalça. Cê é tão sonolenta, revela meu pai.  Desculpa pai, é que as vezes a vida desperta-me alegrias eufóricas mas na maioria das vezes tenho vontade é de dormir mesmo, de subir num colo e ficar por lá. Equilíbrio é o que busco, insegurança é o que tenho. Aprendi a tirar bem as cutículas, descascar mal as laranjas, a engolir as incertezas que cursar jornalismo me traz. Invés de ser peça inteira, quero para sempre ser cacos para um vitral.