terça-feira, 31 de março de 2015

Porque tudo que eu escrevo é bobo

foto: Sarah Rodrigues

Não arrumo bem o guarda-roupa, tenho letra feia, não consigo picar bem os legumes. Eu me desgasto é para escrever. Ô exercício doído, dou voltas e voltas, todo esforço me resulta em pouco. Eu queria: escrever um texto sobre paixões devastadoras, ter eloquência de amores que quebram copos e arrancam cabelos. Mesmo senhora das paixões mornas, gostaria de pegar a literatura com as mãos,  sendo ela  um instante fotográfico, escapa quando não paramos pra gravar. Gostaria de torcê-la até sair um amor bem bonito, ainda que em linhas.

Não fui capaz. 

Eu, que tive o seguinte dia, não sei sobre os amores: fotografei idosos, elaborei e fiz entrevista, descobri num exame taxas hormonais novamente normais, ouvi um professor contar sobre uma cartomante. Mas eu tô com saudade do meu pai. Ô gente, mas que coisa deslumbrante é entrevistar, é descobrir uma orquestra de mais de duzentos anos! Entardecia, e eu fiz uma foto sentada na beirada do passeio da rua mais antiga de São João del Rei. Que profissão encantadora é o jornalismo, esse deter um poder para renunciar. As pessoas do meu dia-a-dia me agradam e hoje achei um intervalo prum amigo. 

Foi tudo uma explosão tão grandiosa de estrelas, que eu comprei um Ruffles. Eu, da penitência de doces na quaresma e dos baldes de chá verde. Fui pra casa lançando o sódio nas minhas coxas feliz, porque eu estudo jornalismo, tenho mil matérias pra fazer, adoro as pessoas, a irmãzinha da Fernanda é linda, a Páscoa taí, num coral eu sou soprano e a vida emerge. 

Vivendo é que se nota.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Intermédios em São João





Foto:Kleyton Guilherme


No banco a moça me fez assinar uns mil papéis. Antes disso, esperei duas horas inquietantes na fila, com um xerox intitulado "O rádio" na mão. Entretanto, o banco estava cheio, e pessoas são muito interessantes no seu desinteresse, não consegui ler. Moças de rasteirinhas segurando distraídas os papéis entediantes de banco. Uma senhora sai puxando pelo braço uma velhinha. Homens braçais aguardam com envelope pardo, com seus bonés desgastados e certos modos ríspidos de esperar. A senhorinha de trás me falando, "tenho síndrome do pânico, hoje tô mais calma porque tomei remédio". Um telefone recebe uma mensagem, um neném espirra, alguns comentam vagamente política... ruídos cotidianos musicam meu aguardo.

Nas ruas, São João del Rei faz do dia um espetáculo. O sol recorta de cores um céu moldando mil torres de igreja. Passam universitários. Observo que andamos meio jogados, com as mochilas tortas, com passos apressados... guardando nossos medos absurdos. Eu corro, quase minha hora de sair com uma mochila também. Todos os dias assusto-me com a coragem absurda que foi, e tem sido, vir para essa cidade de ouro e pedra cursar Jornalismo.

Observo meus professores falarem. A fala deles têm paixão.
A Kátia fala das suas fotografias. Admiro alguém que tenha a delicadeza de enquadrar bem a senhora que reclama do esgoto aberto. O Chico diz: um jornalista precisa conhecer a cidade. São delicadas as engrenagens sanjoanenses. Indo da casa ao Santo Antônio (irônico nome do campus das engenharias) observo senhoras entrarem nos mercadinhos pra escolher tomate. Os butecos desprendem cheiro de pastel frito, os homens se encontrando. Eu afundando o caminho de tanto fazê-lo, indo e vindo, indo e vindo.

 Ainda não decifrei se São João me mata ou me vive. Uma das estações da via-sacra estava aberta por esses dias, enquanto eu passava. Jesus sob a cruz, com expressão e cabelos reais horrorosos. O barroco é um belíssimo mal gosto infinito. Não consigo rezar sob o teto dessas igrejas de ouro. É difícil me encontrar com Deus por aqui, as pessoas são barulhentas. Estudantes falam alto e muito, sem dizer absolutamente nada. Riem, enchem copos, discutem futilidades, e tudo isso tem me cansado muito. Desagradam-me as pessoas excessivas, gosto de quem vem devagar. Agora por exemplo, sinto saudade do Lucas, que me pedia doce. Da Cássia, que faz café. De um moço que só vi três vezes e todas por coincidência, e que não vai mais embora.

Gente me comove muito e eu sinto demais. Não sei o que fazer com tudo isso e por isso escrevo. Como lidar com a assustadora instituição que é o mundo,que é a vida? No banco não pude ler o xerox do rádio porque precisei ler as pessoas. Decifrar as lentas engrenagens que giram a vida em São João del Rei, enquanto estamos aqui como forasteiros, incomodando vizinhos e virando copos, nos destruindo e nos refazendo. Talvez eu tenha mesmo que ser jornalista.  Talvez eu esteja inteira na minha incompletude.

A noite eu rezo, e repito Francisco  de Assis. Quero ser instrumento da paz, e do Teu infinito amor.