sábado, 30 de janeiro de 2016

igrejinhas

Igreja
é sempre coisa bonita
no meio
do lugar

pode ser cidadezinha velha
entristecida e pequena
casinhas descascadas
acumulando velharias no portão.

O muleque pode tá feio
 de pé preto e sujo
a bola pode ser de remendo
manchada de cor

ainda assim as pessoas se lembram de pintar a igrejinha
enfeitar seus pedestais com flor

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Entardeceu


Em cima da área da casa que alugo mas chamo de minha, o sol enroseou o céu. Azul, rosa, e aquele branco dissolvido de nuvens arrastadas. Lugar de clima estranho. É janeiro, mas do nada fez frio com vento. Eu fui é pegar minha roupa lavada apertada no balde pra estender lá em cima. O corredor que passa por detrás da cozinha é estreito, e algo nos irrita: o desconhecido lote atrás da casa deixa cair folhas de um bambuzal. Entope nosso ralo, entupindo também nossa paciência estudantil, pequena para coisas de casa. Mas é bonito: o vento bate nele e o barulho é como se o roçar de folhas revelasse mistérios. Chego no terraço. Ergue-se a cidade, tapete de retalhos de torres de igreja, casas muito antigas e modernas se misturam, o trem se anuncia de longe.

Essa hora que vem caindo, desabando sobre o planeta Terra, tempo no qual as pessoas passam no supermercado, pegam o carro no estacionamento e checam os celulares. Horário de pico do dia, onde se esbarram nossas almas automáticas pelos centros das cidades. Momento café com leite, céu nem preto, forte e escuro, nem branco, gelado, e fresco. Mistura dos dois. Hoje eu pensei que a infelicidade que nos envolve só existe porque buscamos desesperadamente seu contrário. Humanamente adoecidos. Em fúria por carreiras, celulares, máquinas, química. Estamos anoitecendo desde novos. Por isso aperto as continhas do terço, por isso Oxóssi tem que ser esperto. Veja Francisco de Assis: andava na mais entristecida das cores, o marrom, abriram-lhe as feridas de Cristo. Alegrava-se no sofrimento. Comoveu-se com os pobres animais, com os cegos, os aleijados. Era triste, e pela ternura branca desta tristeza, foi feliz. E nós sempre com essas caras alongadas de desespero.

Amansa o céu, o calor do dia vai abrandando. As andanças se desdobram em gestos rápidos. De cima das escadas do terraço, vem cheiro de janta. Alguém jogou carne no alho dourado, o ar soa à legumes cozidos. Bate, bate, os pingos de água da roupa reascendem no ar. Lembro da cachorrinha que há um tempo habitou este lugar, desde pequenininha tinha modos tristonhos. Fico pensando, será que não podemos precisar de pouco? Vivemos engasgando no vômito do futuro, comida indigesta que não chegou e somos obrigados a engolir. Tenho que ansiar grande carreira jornalística para encontrar a famigerada felicidade? Não posso ter essa alegria boba de comprar massa de macarrão pra fazer a noite com molho e queijo enquanto acabo de ver o filme do Woody Allen?

As pessoas perderam a ternura, o jeito meigo de amarrar o sapato e abotoar camisas. O gosto de tomar café com um amigo. De sentar na cozinha tirando cutícula, e, conversar com alguém ao mesmo tempo. Abandonamos as esquinas do nosso país, antes habitadas por conversas domésticas. Gente em lata de conserva. Cássia ligou ontem porque está entediada de ficar internada tomando soro, a velhinha deitada ao lado tem Alzheimer. Conversei bobagens com ela falei para escrever sobre a senhora esquecida. Se não escrevermos, o que será de nós? Se não escrevo vou acabando, derretendo, indo embora rápida como o horário transitório do crepúsculo.

Graças a Deus, estou perdendo minha estridência. Se tiver que fazer unha faço conformada, pico os alimentos para fazer almoço, subo sem dor o morro de casa cheia de sacolas de supermercado. Convivo com a alergia e com a burrice universitária com alegria. Vivo em São João e não em Divinópolis mais. Sou órgão do organismo vivo que é a cidade, veias feitas de ruas de pedra, garganta protagonizada pelos sinos. Ficar sozinha fico, um terço me serve bem de companhia. Quando a gente amanhece fica tudo explodindo, mas depois do meio-dia as coisas vão lentamente se acertando. 

Os grandes discursos, ou um trabalho cansativo, uma discussão ferrenha, um serviço torturante. Às seis da tarde a gente volta e ninguém tem mais que sofrer por nada. Neste horário em São João, às vezes chove fininho, uma chuva cicatrizante. Estou aqui sobre essa área de pisos escuros, nesta casa de muros altos e verdes polvilhada por restos de bambu, observando os varais vazios na mediocridade da minha existência, mas sei que lá fora o mundo segue. Um muleque com pé sujo de de terra chuta uma bola, um outro morre de fome na África. Uma mãe amamenta num hospital, minha vó encolhe as perninhas no sofá e assiste a missa na TV Aparecida. Alguém preocupa-se com o emprego perdido. Nada disso importa agora.

Cai a tarde sobre o mundo. 

domingo, 17 de janeiro de 2016

Cássia.




Em busca do que é belo e vulgar.

Cássia veio de Ermida. 
Lugarzinho perto de Divinópolis, ainda muito verde de mato, onde as sorveterias tem sorvete bom e barato. Partícula de mundo que minha vó, tão antiga, conhece, diz ter parentes que viveram por lá, imagino que numa rocinha doce. É um desses pedaços de nada que são tudo: não tem cinema ou hospital, mas as pessoas se lembram de conversar nas esquinas de chinelo e meia enquanto seguram os braços, e se recordam  de  festejar Santo Antônio. A sutileza do lugar pôs Cássia meiga. E dócil ela foi para o mundo. Primeiro, estacionou em Divinópolis -que flerta a possibilidade de ser grande cidade- para estudar em escola Federal, onde se esbarrou comigo. Éramos as duas encaracoladas na época, barrocas entre o bem e o mal: será que quero ser boa ou ser má? Frequentávamos os retiros enquanto pensávamos na vida que havia de vir. Indecisas. Inseguras. Semi-vivas. 

Quando tivemos que sair, continuei na histeria dos meus dramas. Vim para São João del-Rei, sofrer com esses santos de cabelo e careta nas igrejas barrocas. Segui sendo assim, meio  tristonha, brincando de pecado e salvação enquanto estudo. E Cássia? Teve a coragem que não tive e encarou a capital. Na Letras, na UFMG, na moradia, em Belo Horizonte. Assustada foi e, quando precisou, chorou de solidão na mesa do bar em Divinópolis. "Não tem amigo, não tem ninguém pra conversar, Sarah! Para sentar e fazer isso que a gente tá fazendo agora.", e pediu suco de limão e pinga, mais barato que caipirinha. É gente de excesso de víscera, que ferve café pros amigos e pergunta com interesse sincero como anda a vida, que nem eu. Ê, amiga. O que vai ser de você aí?, pensei. Eu, fraquíssima, com custo aprendi a conviver com o fantasma das cidades históricas que habita São João. 

Mas, Cássia não é mulher de desistir fácil. Inverteu a lógica dos gigantes prédios belorizontinos, e de repente, é sua beagá. Seus cursos de língua, sua turma de cabelo natural e muita tatuagem, seus amigos da moradia. Assim são as pessoas sutis. Chegam com os olhos arregalados no mundo novo e logo estão se encontrando com quem habita aquele universo. Não estava lá para ver, mas imagino bem como foi: observou os rostos, os gostos, a lógica, derramou em todo mundo seu cuidado tão bonito, e pronto: Belo Horizonte não é mais tão triste. Cássia é como um camaleão.

Eis que fui para lá. No meio da praça da Liberdade, num banco que me espirrava a água do chafariz, um sol forte atravessou a árvore acima de mim e bateu bem no meio do livro que eu lia. Imediatamente pensei: esse lugar vai mexer em mim, agitar meu peito que nem essa água desatinada de chafariz. Cássia conhecedora das linhas de ônibus, eu menina assustada no meio daquele lugar que, covardemente, recusei habitar. As ruas se cruzam de maneira confusa, se encontram e se afastam, enquanto passam os veículos, instantâneos. As pessoas não tem expressão. O rapaz de roupa social, a adolescente voltando da escola pública, a mocinha trabalhadora, todos com traços estacionados no zero. Só a senhorinha de saia longa e fios brancos, sorria e conversava com Cássia. 

Acinzentou tudo e choveu. Ficamos cansadas pelo apartamento mesmo, jogadas nos colchões onde minha amiga mora. Lá tinha uma moça ruivinha de fala calma e tatuagem do Pequeno Príncipe, e uma morena de cachos muito agitada, estudando pra OAB. Tudo numa sintonia tão perfeita e estudantil, que meu coração alegrou. Cozinhamos. Teve bife, purê de batatas, tomate e arroz, e o disco do Ciço como trilha sonora. Meu estômago machucado agradeceu a comida caseira, minhas mãos  já meio insensíveis puderam ser vivas picando e descascando as coisas. O tempo chovia e chovia, em sintonia com a gente, em sintonia com Cássia. Ela está acumulando pilhas de caixinhas de remédios ao lado cama, a pele anda amarelada. Ô, amiga, fica assim não. Sempre risonha, andava meio sem gracinha. No outro dia acompanhei-a na ultrassom (chuva ainda incansável): nada no fígado mas o baço está inchado. Ê Cássia não fica assim. Também tenho andado triste, sentindo o abandono do mundo, trazendo em mim assuntos os quais não tenho com quem conversar. Mas embelezemos nossas dores. Somos metidas à poeta, não somos? E vamos ouvindo o moço. "As canções de amor, inventam o amor".

Na sexta Tauane nos encontra, esse nome forte que começa com T, de "tá." (como respondemos alguém quando estamos dispostos a algo.). Tauane chega me assustando, agarrando meu pescoço por trás, eu desesperei achando ser bandido. Começa o show. Ê, Cícero. Que dancinha solta, que timidez meiga, que banda sonora. Se eu quisesse ser barroca e exagerada como os santos são joanenses eu te diria que se precisasse ia andando os 185 quilômetros entre SJDR e BH só para te ver cantar assim, tão lindo. É bonito demais esse menino. Apaixonou-me desde os dezessete anos, colocando-me num estado angustiado do sentimento. Parece que não vivi um amor, que sofri um término, que estou melancólica segurando um copo de café na mão, tudo doendo e florindo ao mesmo tempo... me atordoam suas canções. Fiquei lá, pasmada assistindo o show, de vez em quando Cássia me agitava pra eu acordar. 

Depois um bar boêmio. "Reduto de poetas, músicos, artistas, cineastas. Lugar que tocou Milton Nascimento com Wagner Tiso", a placa de metal dizia sobre o prédio, intitulado Maletto. A minha coisa com as artes, é meu mesmo sentimento com Deus: amor desesperado que fica desorientando meu entendimento. Coisas inalcançáveis: quero ser santa não consigo, artista muito menos. Bebi duas cervejas então. 

Uma melancolia foi me consumindo, vindo comprida, fazendo-me pensar em coisas que eu não queria lembrar. Tenho que ficar me lembrando que a dor é bonita, que Francisco de Assim teve chagas. Ó sangue e água que jorrastes do lado aberto de Jesus... lembro-me que Cássia perdeu em partes esta tendência religiosa. Não casa bem com essa selva de pedro e cimento, onde cada saída corresponde à uma hora dentro de um ônibus. 

Tauane cozinhou feijão, trouxe frutas. Tem um jeito bravo, visceral, mas extremamente amoroso. É pessoa terna que sabe acolher a gente, que faz salada de três vegetais por puro cuidado. Cássia e eu assistimos A Sociedade dos Poetas Mortos, ficamos em silêncio no escuro deste filme. Curamos um pouco com o show da Banda Mais Bonita da Cidade e de Todos os Caetanos do Mundo. Agradeci a Deus por essa nova geração que não parece disposta a deixar morrer a música. 

Cássia quer tatuar um beija-flor. Seu pai achava que quando um entra em nossa casa, traz sorte. Laura deu à ela uma pulseira com o pássaro estampando, algo sobre o desejo de que ela fosse beijar flores. Beije, Cássia. Beije essa BH azedada, beije essa doença para exterminá-la, beije a vida. Você que foi para Ouro Preto sem ter onde dormir só pra curtir uma festa comigo, você que quis desfrutar do seu corpo sem censurá-lo, você que chorou no Levi, você que sonhou e aceitou a UFMG, você que viveu comigo esse amor pelo Cícero, você que me acolheu tão bem em BH, me mostrando que a cidade não é um monstro. 

Amemos Cícero, amemos poesia, amemos até mesmo nossas doenças, porque, há dias que não há mesmo som de obra ou sol na sala. Um beija-flor bate as asas até 80 vezes por segundo. Vida em desespero ele tem. Desesperemo-nos de amor.