terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O desamor


Amor é uma palavra maltrapilha. Já foi mastigada, regurgitada, reustaurada, invertida... mais usada em vão que o nome de Deus. Paixão é brega. Apaixonados. Nem a sonoridade é agradável: a palavra  sobe e desce na boca, som de x som de s, um ai no meio, excessiva em excesso - tão cansantiva que a redundâncias é pertinentes. Minha mãe mede beleza pelo nariz. Mostro alguém, mãe olha que lindo, ela replica, que nariz horroroso. Aí não interessa mais se tem um andar felino, olhos bonitos, cabelo macio ou se articula bem. Quando eu penso que queria resolver as coisas pelo nariz (esse tem um bom, é ele mesmo) lembro que nunca resolvo por método nenhum. Eu nunca sei falar para ninguém ir embora, e deixo tudo solto, com expectativas pairando no ar. Não sei se querem ficar, ou se meio jeito indeciso os impede de ir.

Se me ligar de madrugada eu converso. Concedo colo, ouço reclamar da mãe. Arranho, debocho junto, até mordo. Depois vou embora.

Sobem as janelas de conversa, os copos suam na minha mão ("que curso cê faz, moça?"), um pêndulo oscila impaciente por detrás do meu estômago. Já posso ir? Hoje meu pai definiu o problema. Cê têm umas crises de identidade, já quis até ser freira. A admiração por religiosas já decifrei: encanta-me a firmeza da decisão, sendo eu a senhora das histórias frouxas. Coisa de quem tem quadril largo. Ando gingando, balanço a vida, é oscilante minha vontade, num dia sou solícita noutro finjo que não vi.

Aiai. Largar tudo e viver só por Ele. O amor não-maltrapilho. A última vez que fui na casa das irmãs encantou-me uma noviça. Pele de leite, cachos pretos tão bonitos, enrolados longos e decisivamente. Era até covarde estarem presos tão sem graça, num rabo baixo. Os olhos azuis. Jeans, camisa qualquer. As pessoas sublimes ignoram as aparências, vivem dentro do conforto das almas bonitas. Eu lá, dentro de um short apertada, pensando com a ponta da minha língua num último cara aí. Indigna.

De um, gosto do jeito que gesticula e de ouvir o meu nome. Na boca dele é sonoro. Não, sarah. Continue me negando, por favor. Rapazes das costas fundas. Estou afundando. Quando a barba traça o desenho da boca. Quando entende de cinema e música. Quando carne sobra ao invés de faltar. Quando não há distinção entre pupila e íris, quando resolvem as coisas de forma pragmática, quando caibo bem nas paredes, quando... já era. Meus pseudo-amores têm a duração das minhas unhas: se o esmalte for vermelho no máximo três semanas sem quebrar.

Voz melodiosa, olhar distante, poesia, me dá vontade de chorar, certa graça desamparada. Nada adiantou. Nenhum mereceu três linhas de versos. Amor é ilógico. O biológico a gente doma. Um por vez, mordo e assopro, isso pode isso não, me solta vem cá, conciliamos de acordo com as circunstâncias.

Não confio claramente em quem sabe exatamente onde tá minha cintura. Nos outros eu finjo confiar. Homem não pode ser esperto e os bobos não me interessam. Sei que sou cínica. Não tenho estômago para mãos dadas num salão de festas ou para sentar do lado em um sofá da sala. Prefiro o mistério que me cerca numa esquina, onde me espreita só a lua - ela não cobra que eu permaneça depois. Não amo, mas me divirto muito. Desculpa, mãe. Eu sei que tudo que cê queria era um narizinho bom, que me levasse de mãos dadas para missa. Infelizmente, só a ideia já me deprime. Mas uma hora eu canso, sem pânico. E para missa eu sei bem ir sozinha.

Era para falar de amor, mas não posso falar do que eu não sinto. E nem mereço. Afinal de contas, meu nariz é dos piores mesmo. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Um dia qualquer em Divinópolis

Já reparou o tanto que esse quadro da Márcia é bonito? Não vó, não tinha reparado.
É uma perfeição de santa ceia. É ponto cruz. Faço ideia o trabalho que isso deve ter dado.

Quanto tempo ela demorou vó, cê sabe? Uai, me parece que foi um ano. Quem faz um quadro de presente por um ano tem é a alma bordada,né vó. Pensei.Quantos pontos de amor terão nele? Comentei não. Só comi o minguau de aveia com fubá em silêncio. Um bicho passou voando e bateu bem na teia da aranha. Vó, sabia que ermida é o nome da capela que tinha nas fazendas coloniais? Tinha ermida na casa do seu avô? Não, tinha não. Mas oratório tinha (ah, o museu de São João tem um tanto de oratório), tinha uma parede lotada de santo. Engraçado, cê acredita que lá no quilombo, sendo pequeno do jeito que era tinha duas igrejinhas? Ó. Estamos na copa e está quente demais em Divinópolis, rezamos o terço no sofá ao lado do presépio, já ornado com Jesus bebê.

Mãe, tô querendo comer mais carne não (ela chega com latas de sardinha). Fui caminhar hoje e não dei conta, tava quente demais, fui de calça para passar na igreja (há em mim resquícios de temor a Deus). Cheguei na Catedral, rezei e voltei. Esta igreja é a seiva desa cidade, sem ela não tem vida. É aquele teto pintado de santos e o tom amarelo mistério que deu vida à tudo isso em Divinópolis: casa, árvores, praças, crianças, bares, cães. O livro da vocação carmelitana diz: não nascemos para nós, e sim para Deus e para os outros. Pequei quando debochei da minha mãe. Olha, Sarah, que gracinha (monstrando um guardador de papel higiênico todo bordado de flores). Quanto cê deu nisso? Vinte reais. Nossa, mãe, não acredito que cê gastou vinte conto comprando um trem de guardar papel higiênico. Que que tem? É bonito, aqui em casa nunca teve, eu sempre quis ter um. Ofendida. Desculpa, mãe, vou ler mais sobre a vocação carmelitana. 

Gosto da manhã e da tarde, horário de almoço me deprime. O sol é muito amarelo, o dia para, estamos no meio sem estar em lugar nenhum. Comi sopa de legumes. Essa cidade me trás saúde, a outra me tira. Gosto dos moços sem excessos, pela metade que nem eu. Amor é coisa que assusta. Esse caso divertiu dona Maria ao contar: eu morria de medo do palhaço do reinado, teve um dia que passei aperto demais com um quando era menina, ele tava na mesma casa que eu, e eu apavorada. Depois de um tempo, namorei o rapaz!Flertei com o mocinho que fazia o palhaço, vê se pode! Flertar é palavra que minha geração desconhece, vó. Somos rasos. A grande questão da noite: qual a diferença entre reinado e folia de reis? O bicho na copa solta-se da teia de aranha e volta a zumbir nos ouvidos, passa um carro barulhento lá em baixo do prédio, mas a rua parece estar tão longe. O apartamento é um lugar a parte do mundo. A noite é quente, o presépio sutil, as contas dos terços coloridas. 

Vó, cê merece todos os quadros bordados com ponto de amor do mundo, mãe, cê merece todos os guardadores de papel higiênico. Eu é que sou indigna de habitar a beleza deste lugar.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

De: Maria Para: Maria



Maria da terra
oferece à
Maria do céu 
as flores de Santo Antônio
que com amor cultivou. 

"aqueles pão-de-queijo que
eu fazia, fia, ninguém ligava, 
eu parei de fazer. Porque eu num faço
pra mim, é pros outros."

"Filho, eles não tem mais vinho."

Piedosas
olhos azuis
manto azul
flor, dor, amor.

Maria da terra e do céu se confundem.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Um rato

Eu tenho constantes quase-mortes.
Acordo, como, corro, almoço, cochilo, acho ruim de ter que acordar novamente. A promiscuidade e superficialidade da cidade contaminam. Como viver plenamente num lugar onde as igrejas são de ouro?  Deus foi embora delas.  Ouro, mármore, formas encaracoladas, cheiro de madeira antiga, expulsaram o Senhor. Brinco, batons, bota, copos e vontades, expulsaram Deus de mim. Desde então, arrastei exercícios avaliativos, festas sem ânimo, poucas horas de sono e vontade de dormir para sempre. Achei o álcool agressivo e as madrugadas também. Não li. Não escrevi uma linha.  Esqueci o porquê do jornalismo. Por detrás das cutículas cansadas perdi a sensibilidade dos dedos. Senti as pessoas só na ponta da língua sem me importar com quem veio ou quem foi. Eu não havia conseguido lidar com as baratas ainda quando apareceu um rato. O rato invadiu minha vida. Passou na minha copa, escondeu-se na minha cozinha, serelepiou enquanto eu chorava. Gritei histérica, pedi socorro.

que vida é essa?
Sobre o chão que acolheu meus pés, por vezes alegres e cambaleantes, por vezes cansados ou doloridos, o chão que me conforta nesta terra que não é a minha, um rato de esgoto qualquer passeia.  Não se importa com meus versos, meus constantes pesadelos, meu travesseiro, o terço sobre a janela ou meu medo de estar só. É alheio aos estoques de biscoitos ruins, berinjela e limão na mesma cozinha que ele habita, fantasmas da minha constante obsessão com peso. Eu odiei o rato. Odiei, gritei por três dias. Fiquei excessiva como estou hoje com as palavras, cheia de alardes, porque na minha vida exista um rato, um não-autorizado rato.

 Um rato fez-me perceber a tirania que é viver. Não importa meu repertório, o grande discurso, se o amor de Deus é infinito: ratos, obrigações, álcool, o fisiológico, nos subjugam. Um fio condutor, uma linha tênue me permite existir, e por vezes existir miseravelmente. É dura a existência porque precisamos retirar as cutículas e pintar as unhas. É assustadora a quantidade de sódio nos alimentos. Quando chove, assusta-me ficar só nessa casa de porta e janelas tão próximas da rua.
São João del Rei choveu por dias a fio. Aqui dentro chove há meses. Esqueci-me do grande porquê. E dos pequenos também. Não entendi mais meu imenso gosto por cheiro de café. Não falei pelas manhãs, "obrigado Senhor, pelo dia que nasce pra mim e pelos meus", não coloquei-me em silêncio apaixonado diante do Sacrário. Perdi a hora de voltar para casa, tomei chuva sem nenhuma graça. Desapaixonei-me das pessoas, da palavra "largo", e dos mistérios dos sinos.

Então isso é tudo que tenho feito. Arrastado-me entre os campus Tancredo Neves e Santo Antônio, entre a Avenida Leite de Castro e Paulo Freitas, entre o Sales e a padaria, achando estes nomes próprios rudes demais. Ônibus. Horário. História do Jornalismo. Por vezes, saí sob uma ignorante chuva sem freios, sem zelo pelas pessoas que sofridamente cumprem suas sinas. E pensar que fui eu que cavei todas as minhas.

Um dia, vi um pássaro pousado num galho de mato. Ele era muito pequenino, ainda assim, não imaginei que um galho poderia sustentá-lo. Eu ia com sono demais sob um sol machucando minha pele para o Santo Antônio, e estava amaldiçoando o dia até o momento. Mas era muito bonito o pássaro. Era impressionante uma beleza tão pequena. Algo faiscou em mim. Noutro dia, uma amiga viajou duas horas, sob o pretexto de vir para uma festa, mas o grande motivo era mesmo me dar um abraço e colo. Ajudar-me a chorar enquanto percebo a graça que tem sido minha busca por profundidade: eu mesma nunca estive tão rasa! 

Neste fim de semana visitei um cemitério e achei os túmulos bonitos. A morte é tranquila, cheira a sol quente, mato, vento suave e flores murchas. O barroco não é tão assustador assim. Eu sou também de barro e oca (com sua licença, Adélia). Consolo-me com minhas metades incompatíveis. Não sei ser de ninguém, nem de mim mesma: constantemente me desobedeço. Minh'alma não encontra com outra, pois procura à ela mesma. Sempre acho que falta algo em tudo que escrevo.Tell me that you'll open your eyes. Diz a música. Meu coração ainda se alegra quando batem na minha porta no meio da tarde sem avisar, a gente tava passando por aqui e resolveu vim te ver. A rafa pediu para eu levar o pendrive, o jão trocou a lâmpada para mim, os meninos trouxeram um videogame pra cá. Quando entro na capela das irmãs enclausuradas, meus olhos ainda se arregalam na direção da janelinha por detrás da qual elas se escondem. Observo a chama do Santíssimo. Penso que mesmo pequena, mesmo que eu não esteja sentindo, ela ainda crepita dentro de mim.

Algumas coisas me fazem existir nobremente. Meu fascínio por religiosas, o travesseiro com nome, as visitas ao Seu Paulo. O fato de que enquanto os roxos são no meu corpo eu levo na boa, quando são na alma de alguém, me tiram a graça e arrancam uma lágrima. No dia de Nossa Senhora das Graças, sem saber, pus meu colar de terço. Quem contou foi o Jão, Fato é que eu não queria ter me perdido tanto, mas vai ser muito bonito me reencontrar. 

Fiquei séculos pra escrever esse texto. Porque eu quero ser sempre poética, literária, mas nem com o esforço eu conseguiria agora. Estou seca, opaca, alheia. Só saiu quando eu entendi que ele era uma necessidade não-poética. A poesia é lúdica, transcendental, espirituosa. Adjetivos que estão longe de mim: estou gordurosa, biológica, cheia de fomes corporais. Sonos, gritos, ranger de dentes. Eu quero  mesmo um galho de arruda, uma boa benzedeira, uma novena, talvez um perdão sincero. 

No terceiro dia, não gritei com  o rato. Eu e mais duas amigas incríveis rimos na presença dele. Armamos com certa leveza esquemas táticos para pegá-lo. Fernanda, fica com a vassoura perto da geladeira enquanto eu cutuco ele aqui no canto. Um quarto elemento foi necessário para tentar exterminá-lo. Mateus, mata o rato pra nós. O danado fugiu. Passou do lado do meu pé, e dessa vez eu não chorei. Não chorei porque compreendi que o rato é um dos incidentes da vida. Minhas quase-mortes também são. 

O rato saiu pela porta da frente.
O café da Cássia cheira muito bem. Ainda quero dançar na Coliseu, ir no show do The Rio Mansion, arranjar um grupo de oração pra frequentar por aqui. Descobri músicas tão opostas e tão igualmente boas: Realidade ou Fantasia e A pé. O museu de Sant'Ana em Tiradentes é lindo. Amo museus. São João tem alguns que ainda não entrei. Este texto bem mais ou menos me tomou uns três dias, e mesmo a poesia teimando, vou seguir gritando e descabelando atrás dela.

O fato é que tenho quase-mortes, mas também constantes pequenas redenções.