terça-feira, 31 de maio de 2016

Não é só pelos 33






Para mim, que sempre fui dada às liberdades sem restrições - coisa de aquariana da cabeça solta - ler as notícias sobre a realidade da mulher no Brasil ainda me causa profunda dor, me faz sentir pássaro obrigado a conformar com uma infinidade de grades na gaiola. Os números aterrorizantes vêm como socos no estômago: 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em seus relacionamentos, 56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão, 48% das mulheres agredidas declaram que a violência aconteceu em sua própria casa, e por aí vai. Das muitas coisas que as minhas indignações infantis à respeito da maldade do mundo não consegue digerir, este tipo de dado  em pleno século XXI está entre elas.

A força desta dor feminina me atinge muito além da capacidade de solidarizar-se com o sofrimento alheio: sinto-a em minha pele. Graças a Deus nunca fui estuprada por 33 caras (absurdo ter que render graças por algo do tipo), mas tenho que lidar com olhares esfomeados de homens na rua se o dia está quente e o meu short é curto. Tenho que lidar com cara que se acha no direito de pegar no meu braço e me puxar na festa porque sorri e conversei quando ele me chamou, por educação e simpatia, e aguentar uma insistência opressiva porque o moço acha que "estou fazendo doce". Sou obrigada a aceitar menosprezo em certos assuntos, a ver minhas semelhantes em séries serem coadjuvantes, histórias femininas girarem em torno de uma figura masculina.

Tenho que lidar com uma ridícula competição feminina, na qual muitas vezes criamos antipatias umas das outras sem nunca termos nem conversado, nos ofendemos, pelo simples fato de que algum cara preferiu ela a nós, enquanto os caras não ligam a mínima nem para uma nem para outra. Veja bem, não quero criar generalizações aqui. No entanto, infelizmente, essas situações são muito recorrentes. O machismo está tão profundamente arraigado na nossa sociedade, nos mínimos detalhes cotidianos, como quando um namorado acha que precisa apertar de maneira protetora a cintura da namorada trazendo-a mais para perto, porque se aproxima um grupo de caras. Óbvio que o rapaz faz com a melhor das intenções. Mas não deveríamos precisar ser protegidas, amparadas, puxadas para perto, ter nossas pernas de fora limitadas, andar na rua de noite apertando os braços na frente do corpo com medo de quem pode se aproximar. É 2016, gente! Acorda! Eu não preciso nem racionalizar argumentos para justificar a anormalidade de várias situações que ainda teimam em permanecer.

Meu pai acha normal ele não ter obrigação nenhuma com os afazeres domésticos, apesar de ele e minha mãe trabalharem a mesma quantidade de horas por dia. Nas festas, muitos rapazes (vejam bem: não todos) acham normal passarem o tempo inteiro rodeando grupos de mulheres e ficarem observando e beirando como se fôssemos pedaços de carne, oprimindo a liberdade das moças de dançarem, rirem e aproveitarem a festa como bem quiserem. Enquanto uma moça, quase que normalmente, abre mão de estudos/trabalho por um tempo ao engravidar, o pai segue sua vida normalmente, em algumas vezes colabora apenas financeiramente e as pessoas veem com normalidade esta prática. Acham que somos obrigadas a usar contraceptivos e eles não precisam de camisinha, e se engravidamos, obviamente a culpa é toda nossa, que nos fertilizamos com um espermatozoide vindo dos céus.

Quando uma menina é estuprada por 33 animais, numa violência absolutamente inacreditável por ter sido cometida por seres humanos pensantes, além de relembrar todas os meus incômodos diários pela minha condição feminina, tenho que sofrer por ver pessoas com capacidade de defender estes homens. Em alguns lugares deste mundo escabroso que é a internet, vi as pessoas justificando o ocorrido com algumas fotos que disseram ser da menina segurando armas, fazendo apologia ao crime, e alguns áudios onde rapazes comentam que ela costumava mesmo transar com vários caras.

Preocupa-me viver em uma sociedade que acredita que um crime grotesco pode ser justificável por comportamentos que julga inadequados. Trinta e três pessoas violentarem sexualmente uma criança não pode ser considerado aceitável pelo fato de a menina se envolver com armas ou ter relações sexuais com várias pessoas por escolha própria. Não estou dizendo que acho saudável este tipo de comportamento - e aqui tangencio o tema com um parêntese: se meninas de 16 anos estão se envolvendo com armas e banalizando sua sexualidade, isso acontece devido à marginalização de algumas classes na desigual sociedade brasileira, desde nossa colonização. Somos vítimas da violência, e não suas agentes. Infelizmente, a respeito não só deste assunto mais de várias outras discussões sociais, vejo as pessoas ficarem apenas na superfície do tema, sem reflexão, e corroborar este tipo de ideia absurda.

Há quem goste de ironizar o feminismo pelas redes sociais. Para estes, eu repito uma lição que muito sabiamente aprendi: nunca menospreze uma luta que não é sua. E digo isso para as mulheres também. Moça: se você tem o privilégio de se sentir acolhida, cuidada, respeitada no meio social onde vive, não fale sobre as realidades de um país múltiplo que você não conhece. Enquanto você aprendeu a se cuidar, a se defender e convive com pessoas que consideram sua consciência, moças na favela são espancadas e têm filhos às pencas sem ao menos perceber que vivem em condições que precisam ser revistas e melhoradas. Rapazes: vocês não sabem o que é conviver com um medo genuíno que nunca passa, implantado lá fundo do seu ser, que reascende no coração e faz ele disparar a cada vez que um cara passa na rua e parece te despir com os olhos.


Por isso gente, vamos acordar. Vamos aprofundar esse debate! Algumas coisas já foram mudadas, mas ainda há muito o que se fazer. Eu quero por minha cara, perna, existência por completo e infinitas vontades e anseios sobre as ruas sem dor e sem medo, sem 33 fantasmas para me atormentar.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Cajado no chão

O atabaque e o tambor emendam as vozes de quem precisou lutar pelo direito a fala.
O branco reborda a festa, as cabeças se cobrem em claro sinal de respeito. 
O tom, o tato, o cheiro do fumo e do mato. 
As imagens, as comidas, os cigarros e as cores da devoção tornam-se silhuetas difusas sob a luz oscilante das velas que iluminam o templo onde reside a ancestralidade.
Ancestralidade de um povo que fez nascer de seu suor e dor as construções coloniais que hoje contam o que é São João. Gente que precisou camuflar seus santos de tantas cores e ritmos, orixás deslumbrantes, sob uma série de pretextos católicos para continuarem a beleza de sua devoção. 

Gente que entende de ritmo, merece e quer
 cantar, girar e dançar sob a luz da lua,
mas tem sua espiritualidade natural 
taxada de macumba. 

Em maio, os terreiros de candomblé e umbanda louvam os pretos velhos. Espíritos ancestrais e sábios, que trazem em suas incorporações modos inclinados de quem teve a coluna seriamente prejudicada por chibatadas. A dor que instalou-se nestes corpos gerou belíssima sabedoria nos corações, que hoje, voltam à nossa condição encarnada para aconselhar as mentes dos vivos que precisam de direcionamento espiritual. Toda a periferia são-joanense encontra no ar da cidade os toques dos seus tambores nos fins de semana deste mês para lembrar esses espíritos de resistência e de luz, festejá-los com tambores, comidas e hinos. Preto velho é isso: resistência, ancestralidade, conselho e amor. 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Segunda-feira

Tudo que eu queria era um minuto de descanso sobre este meu país que pende para as ruínas. Nossos políticos sapateiam e botam língua para gente brasileira, e depois fazem passar um pedaço de pau com fogo na ponta - famigerada tocha olímpica -, para ver se despertam nosso farrapento e supérfluo espírito de coletividade, união. Ah, pelamor, gente. Estamos tendo saco mais não. Os ativos, os enérgicos, foram ao fim do trajeto da tocha, aqui em São João del-Rei, gritar um ardoroso fora ao novo presidente ilegal. Quisera eu que todos nós fôssemos assim, barulho vivo, e não batuque de panela seca.

Não há em mim mais estômago ou fôlego. Estou tendo vontade de ser estúpida, irônica, agressiva, de menosprezar inteligências - facetas que vão contra meu esforço de ter espírito cristão. Meus professores me abominariam: não estou tendo coragem para ler sempre as notícias, o jornalismo é um campo que, apesar de meu irremediável amor, é sujo. Eu não posso com isso gente, sou bobinha, desde pequena choro quando chove porque lembro que os moradores de rua não tem como se abrigar do céu furioso.

Prestem atenção no absurdo da insanidade nova  que tem me cercado. Vou na festa - essas com moças jogando franja e fazendo pose pra foto e rapazes bobos de camisa pólo - e começo a me divertir com o álcool e com a música estúpida. Aí eu lembro das adolescentes faveladas que vão engravidar novas, que usam shorts mais curtos que os meus, e que nunca vão estudar numa Universidade Federal - este ostensivo nome e lugar. Nem uma célula do meu corpo me faz mais ou melhor que elas, por motivo nenhum sou merecedora da minha mais privilegiada posição.

Aí entristeço e deixo as pessoas acreditarem que meus olhos distantes são culpa do álcool fazendo oscilar minha órbita, mas não é. É esse sentimento de mundo que me dói, de madalena arrependida, de freira que cuida de rosa no jardim,  sentimento de observar o menininho preto assustado na janela do ônibus. O crítico literário fala sobre meus poemas "ela muda de ideia rapidamente, soa meio pós-adolescente", e a professora de teatro: "quando você recita poesia, soa meio infantil. Parece que tem treze anos". Acho que parei mesmo no sombrio inseguro dos meus trezes anos.

É lá que descobrimos que temos um corpo que menstrua, que lança óleo sobre a pele para gerar espinhas, que temos fomes cansativas. Foi onde comecei a brigar com meu peso e a minha vontade de existir, que queria desenhar vestidinhos, ler livros e escrever bobaginhas. Era viver de só ouvir minha mãe falar "lava as vasilhas pra mim", minha tia falar, "não coma tanto bolo", era não existir rapazes para irem embora e eu precisar ter um espaço para sentir falta. Era tão mais fácil quando eu estava no início da minha aflição!

Agora, cá estou eu. Pensando na máquina de lavar para arrumar, como conciliar os projetos da faculdade, tentando direcionar desejos às pessoas adequadas - ou diria enfadonhas? -, e ainda, o que é que vai ser de mim depois disso tudo? A consciência do mundo político me horrorizou para existência desta terra, abismada tive que constatar: somos mais ruins e burros do que bons e inteligentes. Ainda resta um espacinho no prato para digerir a pior das minhas constatações destes dias? Não sei escrever e, não adianta que me iludam com elogios rasos. Minhas letras são mal-organizadas.

Ah, mas me deixa formar, me deixa casar, me deixa tirar cutículas e lavar pratos, permitam-me arrumar um consolo pra política de que é assim mesmo, sempre foi  e sempre vai ser. Ninguém merece conviver com minha existência agoniada. Nem eu.