quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Fita Amarela.



É, vô. 

Eu não sei se é uma conclusão que aparece apenas por cima de toda essa saudade apertada que tenho de você, mas a verdade é que nada me tira da alma (vai além do que está na cabeça ou sinto no coração) que somente você compreenderia as confusões intermináveis em mim. Mas é tanta a minha vontade... tão inflada, pode ser considerada das dimensões de um sonho. Essa ânsia que é sonho, de poder só mais uma vez sentar no outro sofá, porque você se esticava todo em um, com aquelas meias horrorosas para circulação nos pés. E falar. Falar, falar, falar. Despejar essa alma cheia de nós sobre seus ouvidos serenos e compreensivos, e só nisso já estaria a minha redenção. 

Eu compartilharia com você o meu gosto por histórias, e meu desgosto pela não compreensão dos rumos deste mundo. Você, com seu gosto em sempre discordar de absolutamente tudo, diria: “Sarinha, o mundo não é assim não. Tem muita gente boa por aí”. Ou falaria algo imprevisível, pelo gosto que tinha não só de contrariar, mas de ser problemático, questionador, complicador. Um traço que particularmente herdei. Afinal, o que esperar do homem que possui a ousadia de questionar um distinto pastor da igreja? “Pastor, o senhor vai me desculpar, mas se Deus mandasse o senhor matar seu filho, o senhor mataria?”. “Mataria, seu Zé, devo obediência ao meu Senhor”. “É, então eu num devo não, porque eu não mataria filho meu nenhum, se Deus pedisse. Nunca vi isso, Deus pedir pra matar filho, uai.” 

É, seu Zé. Quem não te conhecesse, que te comprasse. Eu compraria, com toda infinidade de defeitos e imperfeições (santo nunca foi mesmo e tal contestação é inegável), por essa tendência que tenho de enfatizar as coisas boas e esquecer as ruins das pessoas que amo. Não foi o melhor pai do mundo, muito menos marido, mas o avô dos meus sonhos. Que sonho seria tê-lo aqui novamente, vô. 

Lembro-me de quando adoeceu, e quase morreu de tristeza por não poder mais passar o dia batendo perna e conversando fiado. Vivia conhecendo pessoas e histórias, diferentes tonalidades de céu, lugares. Vendinhas, minas de água, igrejinhas. Pequenos passeios, de bermudas confortáveis e chinelos fuleiros. Felicidade simples e completa, que eu, senhorinha muito honrada, afinal desfrutei de tudo isso ainda na inocência e pureza de criança, pude participar. Estava sempre pendurada na sua mãozona por todos esses lugares, brigando enquanto você insistia em dizer que tinham me achado na lata de lixo. Ô brincadeira que me irritava, viu. Irritava por décimos de segundo, até você me encher de doces e eu esquecer completamente a história do lixo. 

Se trago em mim esse gosto pelas humanas, principalmente História, é certeza que minha genética está incluída em tal fato. Lembro-me de emprestar-lhe meu livro didático de História quando você já não podia sair, e de você lê-lo inteiro em um curtíssimo espaço de tempo. Com fala calma e reflexiva, contar-me a respeito do que havia lido, comentando nossa confusa e sangrenta História Mundial. Nenhuma revolução, guerra civil, toda essa parafernália política na qual tudo sempre foi mera questão de interesse, pareciam tão repugnantes quando saídas de sua boca. A voz mansa, os olhos verdes brilhantes... a suavização da maldade humana. Por alguém que nada daquilo viveu, mas que conseguia falar como um ex-combatente cansado e sonhador. Pois o era. Toda vida é uma batalha. 

Queria a doçura envelhecida da sua alma suavizando a minha vida barulhenta, corrida e confusa agora. O mundo não é para nós, vô, almas que gostam da calmaria. Eu não queria o som dos gritos desesperadores, dos prazos, das obrigações. Queria o som do arrastar dos seus chinelos. As dores que sentia nas costas, pelo cansaço de uma vida sofrida, são infinitas vezes mais nobres que as minhas, por horas sentada estudando, lendo, aprendendo. Absorvendo tudo sem saber de nada, enquanto você nada precisava absorver, mas sabia de tudo. 

Eu contaria sobre tudo, absolutamente. Você entenderia mesmo sem a capacidade de entender que nem eu mesma possuo. Compreenderia por exemplo, a necessidade que tenho das pessoas, e a necessidade de querer não necessitá-las. É tanta bobagezinha vô, tanta coisinha sem importância dentro de mim, que não há quem nessa face da Terra as tenha como relevante, mas que você, seu Zé, daria importância extrema. Sei que entenderia que o acúmulo das coisas bestiais, torna-se um peso amargo de quem não consegue chorar por nada. Pois vô, me disseram uma vez, “é você quem dá o play”, e nem sei se em vida, você soube o significado de tal palavra, mas só sei que não é verdade. Como eu queria o controle, mas o senhor veria também em mim, por baixo da serenidade, o descontrole. Não dou nenhum play. Nem no que sinto, nem no que quero, nem no que sou. Só sei disfarçar, só sei dar nós. 

Todos os meus nozinhos adquiridos, seriam desatados quando você novamente dissesse: “fia, come um docinho de banana.” Eu, com gosto e sem resistência, comeria. Os dedos sujando de açúcar, o açúcar limpando a alma por dentro. A alma pateticamente complicada. A alma, que vire e mexe lembra-se do avô, dos chinelos, do cantarolar pelas ruas “quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela”. A alma silenciosa, que pensa e repensa sobre tudo que se passa, sobre tudo o que se quer, sobre tudo o que é, e dos fios enrolados do pensamento, só chega a uma conclusão: como eu queria meu vô aqui. 

E se lhe chamo de você, é porque não aprendi a chama-lo de senhor. Nunca houve formalidades entre nós, vô. Posso quase dizer, que era o meu amigo de infância, como o de uma criança que não tem amigos e idealiza um amigo imaginário fantástico. Um personagem completo você sempre foi: personalidade excêntrica, óculos, chinelos, a fita métrica ao redor do pescoço quando estava trabalhando ainda como alfaiate. Eu no terraço, você também, costurando. Seu Zé Alfaiate. Você sou eu, vô. Estou em você aí, eu sei. Sou a neta achada na lata de lixo, mas que recebeu seu último abraço. Você é quem me tira as lágrimas que não conseguem sair. Obrigada, vô. Por além de tudo, lavar a minha alma.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Caçadora de nós.

Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim.
Doce ou atroz, manso ou feroz. Eu, caçador de mim.
(Milton Nascimento, Caçador de Mim.)


Toda poesia do mundo
 se encontra dentro de uma alma sensível.
Essas raras,
porém docilmente inacabáveis,
claras e castas almas.

Toda a canção
se encontra nas batidas de coração
que ama.
Toda arte tece uma trama.

Com gosto de nuvem e desejo de viver.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O borrão.

Ele abre a porta sem fazer questão de esconder o sorriso sacana que traz nos lábios. Ela sabia. Vinha tremendo desde o momento que havia deixado sua casa. Na verdade, tremia desde o seu “sim” ao telefone. Ele dissera, “Hoje a noite vou ficar sozinho aqui na república. Vem aqui?”, e o sim que ela dera não era para essa pergunta. Era o sim para o sexo. E o adeus a sua virgindade.

“Oi”, ela disse desfiando os olhos para baixo. O tremor em seu corpo atingira um grau incalculável. Não sabia onde colocar as mãos, ou o que dizer. Sua expressão corporal o implorava: aja, eu lhe suplico!
“Oi”, ele riu. Superior, tranquilizante. Ele era lindo. Sem mais delongas, pois ambos sabiam o que iria acontecer ali, ele a puxou para dentro. Bateu a porta, prensou-a na parede e começou a beijá-la. A sensação era boa, mas puramente física. Assim como tudo entre eles. Entretanto, era inevitável sentir-se protegida nos braços de alguém, mesmo que essa alguém só buscasse apertá-la para seu bel prazer. A frustração que ela sentia no frio do pós-contato quando ele a deixava, era compensada nos momentos juntos. Os beijos que por parte dele eram frívolos, mesmo que momentaneamente, aqueciam-na até a alma.

Ele lançou-a sobre a cama, ambos só de peças íntimas. O peso daquele corpo masculino sobre o dela, lembrou-a brevemente o peso em sua própria consciência. Queria sustentar a ilusão de ser especial, mas era estúpido demais cogitar tal hipótese. Até para ela. Afinal, a consciência era suavizada pelo consolo. Teria que aceitar as migalhas mesmo. Aceitara as migalhas do afeto dos pais, migalhas de família, amigos esfarelados. Precisava consolar-se com as migalhas do amor também, contentando-se somente com sua face mais miserável: o prazer físico. Há tempos estava machucada pela vida injusta a qual vivia, e essas migalhas nunca traziam felicidades. Contentava-se com os piques de alegria. Deixou-se ser subjugada, possuída. Dolorosamente usada. Somente para desfrutar do seu mais novo e fascinante momento de alegria, de sentir que alguém a necessitava e queria, ao menos para sentir prazer.
Quando tudo acabou, ele beijou-a na testa. Num ato cínico que transparecesse algum cuidado inexistente, contrastando com o sentimento que ele trazia em si: vitória, mais uma entrega alimentadora de seu ego machista.

Diferentemente do que um dia sonhou, não podia passar a noite lá com ele, entre velas apagadas, carinhos, declarações de amor e muito cuidado. Precisava ir embora, para dar satisfação aos que chamava de pai e mãe. Despediu-se dele e foi embora, sentindo aquele processo da necessidade do sexo desencadear dentro de si. A busca constante por mais momentos de êxtase e importância, por mais passageiros que fossem. 
Foi-se sendo só mais uma mancha de sangue sobre os lençóis dele. Tornando-se cada vez mais somente uma mancha. Ela própria, uma mancha por inteiro.