quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Andam dizendo que sou dramática








Para a minha geração do barulho, farra e festa, com certeza seria a pior das derrotas. Não há em mim mais fôlego para me sentar e beber, para permitir que uma ofensiva vodka bata no fundo do meu estômago enquanto ouço músicas de ritmo fácil e letra ofensiva. Eu estou cansada de tanta gente ordinária nesse mundo e do meu pensamento que não vem em prosa. Ocorrem-me essas frases soltas de verso e eu não tenho o que fazer com isso. Estou cansada do mundo raso em que eu vivo, no qual as pessoas não conseguem ficar em casa nos fins de semana, não lidam com o som gritante do próprio silêncio, com a carência de gente que precisa viver em relacionamentos orbitantes onde um planetinha tem que ficar girando em torno do sol carente e do sentido desaprendido do amor que tomou conta da gente, do fato de eu ter fervido café só pra mim hoje e de eu não ter paciência para lapidar esse texto e de eu andar cansada com o Jeds pelas ruas e eu e meus amigos de faculdade termos tanto medo porque não sabemos aonde vamos parar e um sentimento de apocalipse nos invade e toma conta do que somos e nossas matérias viram medo nossos estágios viram medo, a faculdade noturna é desolante, o frio do campus azeda mais batendo no concreto tão sem graça de prédios tão quadrados que nome maldito é Universidade Federal andam dizendo que sou dramática sou mesmo a rainha do escândalo um corte mínimo no dedo e descabelo três dias e a dor de um mundo inteiro de crianças sujas e esfomeadas, etnias desprezadas,  trabalhos semi-escravos em cubículos, doenças terminais e minha mãe com dor nas costas me assombra e eu sofro com a dor de todo mundo porque a minha é indigna eu que nasci no lado ocidental do mundo onde tem água, direitos maquiadamente respeitados, computadores e partidos corruptos a política esbarra num beco fundo e indecifrável e só entendemos mais mais mais que não há o que ser feito, que essa dor é pra ser sentida mesmo.

Amontoei palavras porque virei um amontoado mesmo.

Alguém só varra meus confusos escombros, por favor.    

terça-feira, 31 de maio de 2016

Não é só pelos 33






Para mim, que sempre fui dada às liberdades sem restrições - coisa de aquariana da cabeça solta - ler as notícias sobre a realidade da mulher no Brasil ainda me causa profunda dor, me faz sentir pássaro obrigado a conformar com uma infinidade de grades na gaiola. Os números aterrorizantes vêm como socos no estômago: 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em seus relacionamentos, 56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão, 48% das mulheres agredidas declaram que a violência aconteceu em sua própria casa, e por aí vai. Das muitas coisas que as minhas indignações infantis à respeito da maldade do mundo não consegue digerir, este tipo de dado  em pleno século XXI está entre elas.

A força desta dor feminina me atinge muito além da capacidade de solidarizar-se com o sofrimento alheio: sinto-a em minha pele. Graças a Deus nunca fui estuprada por 33 caras (absurdo ter que render graças por algo do tipo), mas tenho que lidar com olhares esfomeados de homens na rua se o dia está quente e o meu short é curto. Tenho que lidar com cara que se acha no direito de pegar no meu braço e me puxar na festa porque sorri e conversei quando ele me chamou, por educação e simpatia, e aguentar uma insistência opressiva porque o moço acha que "estou fazendo doce". Sou obrigada a aceitar menosprezo em certos assuntos, a ver minhas semelhantes em séries serem coadjuvantes, histórias femininas girarem em torno de uma figura masculina.

Tenho que lidar com uma ridícula competição feminina, na qual muitas vezes criamos antipatias umas das outras sem nunca termos nem conversado, nos ofendemos, pelo simples fato de que algum cara preferiu ela a nós, enquanto os caras não ligam a mínima nem para uma nem para outra. Veja bem, não quero criar generalizações aqui. No entanto, infelizmente, essas situações são muito recorrentes. O machismo está tão profundamente arraigado na nossa sociedade, nos mínimos detalhes cotidianos, como quando um namorado acha que precisa apertar de maneira protetora a cintura da namorada trazendo-a mais para perto, porque se aproxima um grupo de caras. Óbvio que o rapaz faz com a melhor das intenções. Mas não deveríamos precisar ser protegidas, amparadas, puxadas para perto, ter nossas pernas de fora limitadas, andar na rua de noite apertando os braços na frente do corpo com medo de quem pode se aproximar. É 2016, gente! Acorda! Eu não preciso nem racionalizar argumentos para justificar a anormalidade de várias situações que ainda teimam em permanecer.

Meu pai acha normal ele não ter obrigação nenhuma com os afazeres domésticos, apesar de ele e minha mãe trabalharem a mesma quantidade de horas por dia. Nas festas, muitos rapazes (vejam bem: não todos) acham normal passarem o tempo inteiro rodeando grupos de mulheres e ficarem observando e beirando como se fôssemos pedaços de carne, oprimindo a liberdade das moças de dançarem, rirem e aproveitarem a festa como bem quiserem. Enquanto uma moça, quase que normalmente, abre mão de estudos/trabalho por um tempo ao engravidar, o pai segue sua vida normalmente, em algumas vezes colabora apenas financeiramente e as pessoas veem com normalidade esta prática. Acham que somos obrigadas a usar contraceptivos e eles não precisam de camisinha, e se engravidamos, obviamente a culpa é toda nossa, que nos fertilizamos com um espermatozoide vindo dos céus.

Quando uma menina é estuprada por 33 animais, numa violência absolutamente inacreditável por ter sido cometida por seres humanos pensantes, além de relembrar todas os meus incômodos diários pela minha condição feminina, tenho que sofrer por ver pessoas com capacidade de defender estes homens. Em alguns lugares deste mundo escabroso que é a internet, vi as pessoas justificando o ocorrido com algumas fotos que disseram ser da menina segurando armas, fazendo apologia ao crime, e alguns áudios onde rapazes comentam que ela costumava mesmo transar com vários caras.

Preocupa-me viver em uma sociedade que acredita que um crime grotesco pode ser justificável por comportamentos que julga inadequados. Trinta e três pessoas violentarem sexualmente uma criança não pode ser considerado aceitável pelo fato de a menina se envolver com armas ou ter relações sexuais com várias pessoas por escolha própria. Não estou dizendo que acho saudável este tipo de comportamento - e aqui tangencio o tema com um parêntese: se meninas de 16 anos estão se envolvendo com armas e banalizando sua sexualidade, isso acontece devido à marginalização de algumas classes na desigual sociedade brasileira, desde nossa colonização. Somos vítimas da violência, e não suas agentes. Infelizmente, a respeito não só deste assunto mais de várias outras discussões sociais, vejo as pessoas ficarem apenas na superfície do tema, sem reflexão, e corroborar este tipo de ideia absurda.

Há quem goste de ironizar o feminismo pelas redes sociais. Para estes, eu repito uma lição que muito sabiamente aprendi: nunca menospreze uma luta que não é sua. E digo isso para as mulheres também. Moça: se você tem o privilégio de se sentir acolhida, cuidada, respeitada no meio social onde vive, não fale sobre as realidades de um país múltiplo que você não conhece. Enquanto você aprendeu a se cuidar, a se defender e convive com pessoas que consideram sua consciência, moças na favela são espancadas e têm filhos às pencas sem ao menos perceber que vivem em condições que precisam ser revistas e melhoradas. Rapazes: vocês não sabem o que é conviver com um medo genuíno que nunca passa, implantado lá fundo do seu ser, que reascende no coração e faz ele disparar a cada vez que um cara passa na rua e parece te despir com os olhos.


Por isso gente, vamos acordar. Vamos aprofundar esse debate! Algumas coisas já foram mudadas, mas ainda há muito o que se fazer. Eu quero por minha cara, perna, existência por completo e infinitas vontades e anseios sobre as ruas sem dor e sem medo, sem 33 fantasmas para me atormentar.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Cajado no chão

O atabaque e o tambor emendam as vozes de quem precisou lutar pelo direito a fala.
O branco reborda a festa, as cabeças se cobrem em claro sinal de respeito. 
O tom, o tato, o cheiro do fumo e do mato. 
As imagens, as comidas, os cigarros e as cores da devoção tornam-se silhuetas difusas sob a luz oscilante das velas que iluminam o templo onde reside a ancestralidade.
Ancestralidade de um povo que fez nascer de seu suor e dor as construções coloniais que hoje contam o que é São João. Gente que precisou camuflar seus santos de tantas cores e ritmos, orixás deslumbrantes, sob uma série de pretextos católicos para continuarem a beleza de sua devoção. 

Gente que entende de ritmo, merece e quer
 cantar, girar e dançar sob a luz da lua,
mas tem sua espiritualidade natural 
taxada de macumba. 

Em maio, os terreiros de candomblé e umbanda louvam os pretos velhos. Espíritos ancestrais e sábios, que trazem em suas incorporações modos inclinados de quem teve a coluna seriamente prejudicada por chibatadas. A dor que instalou-se nestes corpos gerou belíssima sabedoria nos corações, que hoje, voltam à nossa condição encarnada para aconselhar as mentes dos vivos que precisam de direcionamento espiritual. Toda a periferia são-joanense encontra no ar da cidade os toques dos seus tambores nos fins de semana deste mês para lembrar esses espíritos de resistência e de luz, festejá-los com tambores, comidas e hinos. Preto velho é isso: resistência, ancestralidade, conselho e amor. 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Segunda-feira

Tudo que eu queria era um minuto de descanso sobre este meu país que pende para as ruínas. Nossos políticos sapateiam e botam língua para gente brasileira, e depois fazem passar um pedaço de pau com fogo na ponta - famigerada tocha olímpica -, para ver se despertam nosso farrapento e supérfluo espírito de coletividade, união. Ah, pelamor, gente. Estamos tendo saco mais não. Os ativos, os enérgicos, foram ao fim do trajeto da tocha, aqui em São João del-Rei, gritar um ardoroso fora ao novo presidente ilegal. Quisera eu que todos nós fôssemos assim, barulho vivo, e não batuque de panela seca.

Não há em mim mais estômago ou fôlego. Estou tendo vontade de ser estúpida, irônica, agressiva, de menosprezar inteligências - facetas que vão contra meu esforço de ter espírito cristão. Meus professores me abominariam: não estou tendo coragem para ler sempre as notícias, o jornalismo é um campo que, apesar de meu irremediável amor, é sujo. Eu não posso com isso gente, sou bobinha, desde pequena choro quando chove porque lembro que os moradores de rua não tem como se abrigar do céu furioso.

Prestem atenção no absurdo da insanidade nova  que tem me cercado. Vou na festa - essas com moças jogando franja e fazendo pose pra foto e rapazes bobos de camisa pólo - e começo a me divertir com o álcool e com a música estúpida. Aí eu lembro das adolescentes faveladas que vão engravidar novas, que usam shorts mais curtos que os meus, e que nunca vão estudar numa Universidade Federal - este ostensivo nome e lugar. Nem uma célula do meu corpo me faz mais ou melhor que elas, por motivo nenhum sou merecedora da minha mais privilegiada posição.

Aí entristeço e deixo as pessoas acreditarem que meus olhos distantes são culpa do álcool fazendo oscilar minha órbita, mas não é. É esse sentimento de mundo que me dói, de madalena arrependida, de freira que cuida de rosa no jardim,  sentimento de observar o menininho preto assustado na janela do ônibus. O crítico literário fala sobre meus poemas "ela muda de ideia rapidamente, soa meio pós-adolescente", e a professora de teatro: "quando você recita poesia, soa meio infantil. Parece que tem treze anos". Acho que parei mesmo no sombrio inseguro dos meus trezes anos.

É lá que descobrimos que temos um corpo que menstrua, que lança óleo sobre a pele para gerar espinhas, que temos fomes cansativas. Foi onde comecei a brigar com meu peso e a minha vontade de existir, que queria desenhar vestidinhos, ler livros e escrever bobaginhas. Era viver de só ouvir minha mãe falar "lava as vasilhas pra mim", minha tia falar, "não coma tanto bolo", era não existir rapazes para irem embora e eu precisar ter um espaço para sentir falta. Era tão mais fácil quando eu estava no início da minha aflição!

Agora, cá estou eu. Pensando na máquina de lavar para arrumar, como conciliar os projetos da faculdade, tentando direcionar desejos às pessoas adequadas - ou diria enfadonhas? -, e ainda, o que é que vai ser de mim depois disso tudo? A consciência do mundo político me horrorizou para existência desta terra, abismada tive que constatar: somos mais ruins e burros do que bons e inteligentes. Ainda resta um espacinho no prato para digerir a pior das minhas constatações destes dias? Não sei escrever e, não adianta que me iludam com elogios rasos. Minhas letras são mal-organizadas.

Ah, mas me deixa formar, me deixa casar, me deixa tirar cutículas e lavar pratos, permitam-me arrumar um consolo pra política de que é assim mesmo, sempre foi  e sempre vai ser. Ninguém merece conviver com minha existência agoniada. Nem eu.









quarta-feira, 20 de abril de 2016

Recatadíssima.

]

às vezes me quero.
às vezes me dou.
às vezes me invento.
às vezes só sou.

não podem me por
um ponto final
se quero uma existência
em reticências. 

não tô vendo Deus
medir
quantos dedos abaixo 
dos joelhos
 estão as saias. 

por isso entro na igreja 
e toco o sacrário 
com o meu amor e
minhas carnes quentes
mesmo que me reprimam com o olhar
as beatas sem fervor.

meu pai diz: 
você vai sair com esse rabo de fora?

respondo:
vou, pai. 
o rabo é meu. 




domingo, 17 de abril de 2016

Vai ter luta


A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão - Apesar de você, Chico Buarque 

Brasil.
Brasas.
Fogo ardente que reverbera nas cordas vocais deste povo que, desde suas origens, teve que aprender a gritar contra as indignidades que lhes eram impostas. Esta terra se construiu com gente que precisou, desde sempre, flutuar por cima da dor: índios que tiveram sua vivência restruturada por hábitos que lhe eram estranhos, portugueses saudosistas, cantando tristes fados à terra natal abandonada, negros traficados, angustiados por perderem sua África e a condição humana pela escravidão. Um povo que tinha tudo para lamentar um futuro. Nação originalmente triste, que no ventre deste solo de proporções continentais de tão exuberantes riquezas, se gerou entre lamentações e a falta de tantas coisas.

Gente que tinha tudo para ser cabisbaixa, viver com olhos rasos e razão conformada. Terra que foi primordialmente lugar de poucos, onde a maioria era apenas massa de manobra do interesse dos grandes. Mas o ardor fogoso que carregamos no nome não nos permitiu o conformismo. Somos gente de víscera. De histeria. Do gosto pelo escândalo necessário, gente que, quando quer aperta firme a mão do irmão e vai adiante. E nos misturamos tão profundamente, nos entranhamos uns nos outros porque somos curiosos por natureza. Fizemos da nossa genética um verdadeiro vitral. Variados cacos de diversas cores num encaixe absolutamente perfeito, curiosamente belo.

É por isso que não importa o quanto os velhos dominadores que insistem em permanecer no alto desde o dia que desceram de navios briguem para continuar esse ordem. Nós não vamos permitir. Sabe por quê, meus queridos? Esta terra aqui é de todo mundo, e ninguém pode querer se fazer mais. Brasil é lugar de Chico Buarque e Milton Nascimento, Gilberto Freyre e Carmen Miranda. Olga Benário e Anita Mafalti, entre tantos outros e outras, que mostraram nossa beleza original.

Aqui meus raros, é terra de qualquer credo, cor, classe social. E se não é ainda por completo, vai ser. Porque não vamos parar até conseguir. Repiquem os tambores dos terreiros, porque Iemanjá, Iansã, Xangô, vão ficar. Aumentem o som porque, vai ter a gente do funk, do rap, do samba, da periferia e do centro dançando sobre as avenidas de nossas cidades tão lindas. Porque aqui é lugar de quem quiser. Preto, branco, gay, hétero, alto, baixo, rico, pobre. O Brasil é como nós minha gente: adaptável. Somos escorregadios, espertos, multifacetados e coloridos de uma forma que qualquer outro povo sobre este globo desconhece.  Temos homens de mãos seguras e mulheres de quadril largo. Acreditem: ninguém pode com a gente.

Os cálices serão devidamente afastados porque Jesus Cristo já morreu e ressuscitou pelos pobres e oprimidos. Ninguém vai ficar bebendo cálices de fel imposto pelo poder alheio. Ressuscitaremos sempre nossas lutas.

Por isso, para quem acha que vai conservar nossos antigos erros ainda não corrigidos, só digo uma coisa. Cuidado.

Porque apesar de você, amanhã vai ser outro dia.


Ouça Apesar de Você - Chico Buarque.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Mataram meu Senhor


Hoje é o dia mais triste do ano.
Às três da tarde, paralisa o tempo. Sexta que em todos os anos incansavelmente se faz nublada. As pessoas esquecem as carnes, as vaidades, os fardos cotidianos e se estacionam no dia. O céu pesa quente de nuvens cinzas. Na minha igreja os freis entram em silêncio, enquanto Ele, descido da cruz, repousa sob pano vermelho em frente ao altar. Mataram meu Senhor.  Pilatos lavou as mãos e soltou Barrabás, a multidão agitou injusta poeira e pediu que assassinassem aquele que, segundo eles, se dizia o rei dos Judeus.

No desconforto do banco de madeira da igreja, enquanto observo os mais diversos tipos de pés na fila até o altar, só sei pensar que não consigo acreditar numa humanidade que matou Jesus Cristo. Há esperança? Pergunto-me. Tento pensar em tanta gente boa por aí. A minha vó, que gosta de cozinhar pros outros, as irmãs que cuidam dos deficientes mentais, a moça que de tão delicada tatuou "delicadeza" no pulso, que é da Arquitetura e gasta seu tempo construindo uma casa para o menino autista. Ainda assim, é como se o ar abafado do dia fosse envolvendo-me e sufocando a fé que tanto quero ter. Há um vão entre o bem o mal, sinto que a balança pende para o lado obscuro da nossa fraqueza humana.

Aqui mesmo, dentro desta igreja franciscana. Alguns padres alongam as celebrações por puro prestígio, os corais envaidecem as vozes. As senhoras gordas que se mostram bonachonas, colocam os dedos de unhas mal pintadas na frente da boca para cochichar sobre pessoas que costumam cumprimentar com simpatia. Eu mesma: senti raiva obscura quando numa quinta-feira santa expuseram meu Senhor, agoniado por saber da morte que se aproximava, e as pessoas se juntaram em grupinhos pela igreja para conversar com risinhos baixos. Morro lentamente com pessoas que se dizem boas e ao invés de semearem simplicidade e exemplo bonito no mundo, defendem radicalismos exacerbados. Enveneno-me quando às vezes, eu mesma sou essa pessoa.

O meu grande sofrimento sobre esta Terra: tento, mas não consigo ser boa. Quero um amor genuíno, mas me vejo brincando com os rapazes. Deveria visitar o Albergue, mas nas tardes não preenchidas por tarefas, prefiro cochilar. Passo diariamente na porta de umas cinco igrejas, e muitas vezes não entro em nenhuma para reverenciar Aquele que, todos os dias me sorri através do sol. Deixo minhas novenas pela metade, dentro da igreja reparo na senhora que usou blusa de uma estampa e calça de outra mais do que na homilia.

Ô meu Jesus, estive na vigília ao seu lado, mas quem sou eu pra julgar o mundo de ruim? Se sou como essa gente, apodrecendo pelas beiradas, definhando pelas minhas futilidades e desejos dispensáveis! Eu pedi, na quinta-feira: Ô Senhor, quando fores pro Pai amanhã, que ao Teu suor e sangue apavorados, se misture minha humanidade baixa. Leva toda essa impureza de mim. Deixa-me chegar perto de Teresa, Chiara e Francisco.

Nesta sexta-feira que contorce o mundo, os cravos, o sangue, a coroa de espinho e a cruz de madeira se unem à Ele, na morte que vem com o mormaço das três da tarde. Tentativa pulsante do Amor de salvar a humanidade.

Ô Senhor, perdoai.  Te mataram. Te matamos todos os dias. Na fome africana, nos tiroteios, na guerra, nas disputas por poder, na intolerância e na incompreensão diária que instauramos sobre o Éden que nos concedeste em sua criação benigna. Eu olho para Tua cruz e mesmo eu sendo insignificante partícula, sinto dor. O vinagre amargo que te deram na boca é a sede ansiosa que temos de Vós: aguardamos a Páscoa do mundo.

sábado, 12 de março de 2016

Desculpa.

Não há formas
de me conter.
Não há argumento
que segure minha mão
prende-me por
meia-hora
essa sua
 tatuagem na perna

quem fará parar
o líquido gelatinoso que sou?
o dom
pra caber numa
infinidade
de recipientes
me faz escorregar
indecorosa
por tantos braços
vontades
suspiros

não sou de tudo cruel,
eu ligo.

importo-me
se sofrem
e amargam a boca
grito histérica e louca

externo
minha incoerência
empurro e
puxo de volta

mudo mil vezes
o tom do batom.

os rapazes me entretêm
por instantes fotográficos
de paixão superficial.

depois
pego nos meus terços,
rogo,
ó Maria, ó Maria

salva-me deste fogo que
em mim queima
é que definitivamente não é
o ardor de Pentecostes
que vem do Espírito de Deus.





domingo, 21 de fevereiro de 2016

angústia


eu sou um abismo
quase sempre
prestes a ruir 
indo e vindo 
indo e vindo
balançando
na beirada 
de mim 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

imprópria



me deixa
te segurar entre os dedos
barroca
entre o barro
que tampa
meu oco


ô moço
há uma curva
entre sua cabeça
e pescoço
que planejei
maldosamente
habitar

sábado, 30 de janeiro de 2016

igrejinhas

Igreja
é sempre coisa bonita
no meio
do lugar

pode ser cidadezinha velha
entristecida e pequena
casinhas descascadas
acumulando velharias no portão.

O muleque pode tá feio
 de pé preto e sujo
a bola pode ser de remendo
manchada de cor

ainda assim as pessoas se lembram de pintar a igrejinha
enfeitar seus pedestais com flor

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Entardeceu


Em cima da área da casa que alugo mas chamo de minha, o sol enroseou o céu. Azul, rosa, e aquele branco dissolvido de nuvens arrastadas. Lugar de clima estranho. É janeiro, mas do nada fez frio com vento. Eu fui é pegar minha roupa lavada apertada no balde pra estender lá em cima. O corredor que passa por detrás da cozinha é estreito, e algo nos irrita: o desconhecido lote atrás da casa deixa cair folhas de um bambuzal. Entope nosso ralo, entupindo também nossa paciência estudantil, pequena para coisas de casa. Mas é bonito: o vento bate nele e o barulho é como se o roçar de folhas revelasse mistérios. Chego no terraço. Ergue-se a cidade, tapete de retalhos de torres de igreja, casas muito antigas e modernas se misturam, o trem se anuncia de longe.

Essa hora que vem caindo, desabando sobre o planeta Terra, tempo no qual as pessoas passam no supermercado, pegam o carro no estacionamento e checam os celulares. Horário de pico do dia, onde se esbarram nossas almas automáticas pelos centros das cidades. Momento café com leite, céu nem preto, forte e escuro, nem branco, gelado, e fresco. Mistura dos dois. Hoje eu pensei que a infelicidade que nos envolve só existe porque buscamos desesperadamente seu contrário. Humanamente adoecidos. Em fúria por carreiras, celulares, máquinas, química. Estamos anoitecendo desde novos. Por isso aperto as continhas do terço, por isso Oxóssi tem que ser esperto. Veja Francisco de Assis: andava na mais entristecida das cores, o marrom, abriram-lhe as feridas de Cristo. Alegrava-se no sofrimento. Comoveu-se com os pobres animais, com os cegos, os aleijados. Era triste, e pela ternura branca desta tristeza, foi feliz. E nós sempre com essas caras alongadas de desespero.

Amansa o céu, o calor do dia vai abrandando. As andanças se desdobram em gestos rápidos. De cima das escadas do terraço, vem cheiro de janta. Alguém jogou carne no alho dourado, o ar soa à legumes cozidos. Bate, bate, os pingos de água da roupa reascendem no ar. Lembro da cachorrinha que há um tempo habitou este lugar, desde pequenininha tinha modos tristonhos. Fico pensando, será que não podemos precisar de pouco? Vivemos engasgando no vômito do futuro, comida indigesta que não chegou e somos obrigados a engolir. Tenho que ansiar grande carreira jornalística para encontrar a famigerada felicidade? Não posso ter essa alegria boba de comprar massa de macarrão pra fazer a noite com molho e queijo enquanto acabo de ver o filme do Woody Allen?

As pessoas perderam a ternura, o jeito meigo de amarrar o sapato e abotoar camisas. O gosto de tomar café com um amigo. De sentar na cozinha tirando cutícula, e, conversar com alguém ao mesmo tempo. Abandonamos as esquinas do nosso país, antes habitadas por conversas domésticas. Gente em lata de conserva. Cássia ligou ontem porque está entediada de ficar internada tomando soro, a velhinha deitada ao lado tem Alzheimer. Conversei bobagens com ela falei para escrever sobre a senhora esquecida. Se não escrevermos, o que será de nós? Se não escrevo vou acabando, derretendo, indo embora rápida como o horário transitório do crepúsculo.

Graças a Deus, estou perdendo minha estridência. Se tiver que fazer unha faço conformada, pico os alimentos para fazer almoço, subo sem dor o morro de casa cheia de sacolas de supermercado. Convivo com a alergia e com a burrice universitária com alegria. Vivo em São João e não em Divinópolis mais. Sou órgão do organismo vivo que é a cidade, veias feitas de ruas de pedra, garganta protagonizada pelos sinos. Ficar sozinha fico, um terço me serve bem de companhia. Quando a gente amanhece fica tudo explodindo, mas depois do meio-dia as coisas vão lentamente se acertando. 

Os grandes discursos, ou um trabalho cansativo, uma discussão ferrenha, um serviço torturante. Às seis da tarde a gente volta e ninguém tem mais que sofrer por nada. Neste horário em São João, às vezes chove fininho, uma chuva cicatrizante. Estou aqui sobre essa área de pisos escuros, nesta casa de muros altos e verdes polvilhada por restos de bambu, observando os varais vazios na mediocridade da minha existência, mas sei que lá fora o mundo segue. Um muleque com pé sujo de de terra chuta uma bola, um outro morre de fome na África. Uma mãe amamenta num hospital, minha vó encolhe as perninhas no sofá e assiste a missa na TV Aparecida. Alguém preocupa-se com o emprego perdido. Nada disso importa agora.

Cai a tarde sobre o mundo. 

domingo, 17 de janeiro de 2016

Cássia.




Em busca do que é belo e vulgar.

Cássia veio de Ermida. 
Lugarzinho perto de Divinópolis, ainda muito verde de mato, onde as sorveterias tem sorvete bom e barato. Partícula de mundo que minha vó, tão antiga, conhece, diz ter parentes que viveram por lá, imagino que numa rocinha doce. É um desses pedaços de nada que são tudo: não tem cinema ou hospital, mas as pessoas se lembram de conversar nas esquinas de chinelo e meia enquanto seguram os braços, e se recordam  de  festejar Santo Antônio. A sutileza do lugar pôs Cássia meiga. E dócil ela foi para o mundo. Primeiro, estacionou em Divinópolis -que flerta a possibilidade de ser grande cidade- para estudar em escola Federal, onde se esbarrou comigo. Éramos as duas encaracoladas na época, barrocas entre o bem e o mal: será que quero ser boa ou ser má? Frequentávamos os retiros enquanto pensávamos na vida que havia de vir. Indecisas. Inseguras. Semi-vivas. 

Quando tivemos que sair, continuei na histeria dos meus dramas. Vim para São João del-Rei, sofrer com esses santos de cabelo e careta nas igrejas barrocas. Segui sendo assim, meio  tristonha, brincando de pecado e salvação enquanto estudo. E Cássia? Teve a coragem que não tive e encarou a capital. Na Letras, na UFMG, na moradia, em Belo Horizonte. Assustada foi e, quando precisou, chorou de solidão na mesa do bar em Divinópolis. "Não tem amigo, não tem ninguém pra conversar, Sarah! Para sentar e fazer isso que a gente tá fazendo agora.", e pediu suco de limão e pinga, mais barato que caipirinha. É gente de excesso de víscera, que ferve café pros amigos e pergunta com interesse sincero como anda a vida, que nem eu. Ê, amiga. O que vai ser de você aí?, pensei. Eu, fraquíssima, com custo aprendi a conviver com o fantasma das cidades históricas que habita São João. 

Mas, Cássia não é mulher de desistir fácil. Inverteu a lógica dos gigantes prédios belorizontinos, e de repente, é sua beagá. Seus cursos de língua, sua turma de cabelo natural e muita tatuagem, seus amigos da moradia. Assim são as pessoas sutis. Chegam com os olhos arregalados no mundo novo e logo estão se encontrando com quem habita aquele universo. Não estava lá para ver, mas imagino bem como foi: observou os rostos, os gostos, a lógica, derramou em todo mundo seu cuidado tão bonito, e pronto: Belo Horizonte não é mais tão triste. Cássia é como um camaleão.

Eis que fui para lá. No meio da praça da Liberdade, num banco que me espirrava a água do chafariz, um sol forte atravessou a árvore acima de mim e bateu bem no meio do livro que eu lia. Imediatamente pensei: esse lugar vai mexer em mim, agitar meu peito que nem essa água desatinada de chafariz. Cássia conhecedora das linhas de ônibus, eu menina assustada no meio daquele lugar que, covardemente, recusei habitar. As ruas se cruzam de maneira confusa, se encontram e se afastam, enquanto passam os veículos, instantâneos. As pessoas não tem expressão. O rapaz de roupa social, a adolescente voltando da escola pública, a mocinha trabalhadora, todos com traços estacionados no zero. Só a senhorinha de saia longa e fios brancos, sorria e conversava com Cássia. 

Acinzentou tudo e choveu. Ficamos cansadas pelo apartamento mesmo, jogadas nos colchões onde minha amiga mora. Lá tinha uma moça ruivinha de fala calma e tatuagem do Pequeno Príncipe, e uma morena de cachos muito agitada, estudando pra OAB. Tudo numa sintonia tão perfeita e estudantil, que meu coração alegrou. Cozinhamos. Teve bife, purê de batatas, tomate e arroz, e o disco do Ciço como trilha sonora. Meu estômago machucado agradeceu a comida caseira, minhas mãos  já meio insensíveis puderam ser vivas picando e descascando as coisas. O tempo chovia e chovia, em sintonia com a gente, em sintonia com Cássia. Ela está acumulando pilhas de caixinhas de remédios ao lado cama, a pele anda amarelada. Ô, amiga, fica assim não. Sempre risonha, andava meio sem gracinha. No outro dia acompanhei-a na ultrassom (chuva ainda incansável): nada no fígado mas o baço está inchado. Ê Cássia não fica assim. Também tenho andado triste, sentindo o abandono do mundo, trazendo em mim assuntos os quais não tenho com quem conversar. Mas embelezemos nossas dores. Somos metidas à poeta, não somos? E vamos ouvindo o moço. "As canções de amor, inventam o amor".

Na sexta Tauane nos encontra, esse nome forte que começa com T, de "tá." (como respondemos alguém quando estamos dispostos a algo.). Tauane chega me assustando, agarrando meu pescoço por trás, eu desesperei achando ser bandido. Começa o show. Ê, Cícero. Que dancinha solta, que timidez meiga, que banda sonora. Se eu quisesse ser barroca e exagerada como os santos são joanenses eu te diria que se precisasse ia andando os 185 quilômetros entre SJDR e BH só para te ver cantar assim, tão lindo. É bonito demais esse menino. Apaixonou-me desde os dezessete anos, colocando-me num estado angustiado do sentimento. Parece que não vivi um amor, que sofri um término, que estou melancólica segurando um copo de café na mão, tudo doendo e florindo ao mesmo tempo... me atordoam suas canções. Fiquei lá, pasmada assistindo o show, de vez em quando Cássia me agitava pra eu acordar. 

Depois um bar boêmio. "Reduto de poetas, músicos, artistas, cineastas. Lugar que tocou Milton Nascimento com Wagner Tiso", a placa de metal dizia sobre o prédio, intitulado Maletto. A minha coisa com as artes, é meu mesmo sentimento com Deus: amor desesperado que fica desorientando meu entendimento. Coisas inalcançáveis: quero ser santa não consigo, artista muito menos. Bebi duas cervejas então. 

Uma melancolia foi me consumindo, vindo comprida, fazendo-me pensar em coisas que eu não queria lembrar. Tenho que ficar me lembrando que a dor é bonita, que Francisco de Assim teve chagas. Ó sangue e água que jorrastes do lado aberto de Jesus... lembro-me que Cássia perdeu em partes esta tendência religiosa. Não casa bem com essa selva de pedro e cimento, onde cada saída corresponde à uma hora dentro de um ônibus. 

Tauane cozinhou feijão, trouxe frutas. Tem um jeito bravo, visceral, mas extremamente amoroso. É pessoa terna que sabe acolher a gente, que faz salada de três vegetais por puro cuidado. Cássia e eu assistimos A Sociedade dos Poetas Mortos, ficamos em silêncio no escuro deste filme. Curamos um pouco com o show da Banda Mais Bonita da Cidade e de Todos os Caetanos do Mundo. Agradeci a Deus por essa nova geração que não parece disposta a deixar morrer a música. 

Cássia quer tatuar um beija-flor. Seu pai achava que quando um entra em nossa casa, traz sorte. Laura deu à ela uma pulseira com o pássaro estampando, algo sobre o desejo de que ela fosse beijar flores. Beije, Cássia. Beije essa BH azedada, beije essa doença para exterminá-la, beije a vida. Você que foi para Ouro Preto sem ter onde dormir só pra curtir uma festa comigo, você que quis desfrutar do seu corpo sem censurá-lo, você que chorou no Levi, você que sonhou e aceitou a UFMG, você que viveu comigo esse amor pelo Cícero, você que me acolheu tão bem em BH, me mostrando que a cidade não é um monstro. 

Amemos Cícero, amemos poesia, amemos até mesmo nossas doenças, porque, há dias que não há mesmo som de obra ou sol na sala. Um beija-flor bate as asas até 80 vezes por segundo. Vida em desespero ele tem. Desesperemo-nos de amor.